sábado, 29 de outubro de 2016

Capítulo Cinquenta Ponto Três

(...)


Solaris – o Ministério Gazel – enviou uma força maciça para lá para obter ‘deus e sua sabedoria’.

... Mas, a essa altura, nem a nação de Solaris nem a organização conhecida como Gebler existiam mais.

A única coisa que havia restado era um acúmulo inumerável de armas.
Quase todos os solarianos tinham sido transfigurados em armas...

O Ministério Gazel agora reinava sobre eles como seus comandantes.

Não havia como podermos permitir que deus, ou a sabedoria de deus, caíssem nas mãos do Ministério.
Decidimos reunir todas as forças que pudemos, e partimos rumo à Mahanon.

Era uma batalha perigosa. Não havia garantia alguma de que conseguiríamos retornar vivos.

Deveríamos conduzir o plano ao alvorecer. Assim sendo, eu tive que tornar mais severa a minha decisão com relação a ‘ela’...


Todos estavam reunidos na sala de reuniões da Yggdrasil III, e Elly Van Houten não podia acreditar no que acabara de ouvir.
_ Espere aí um minuto! Você quer que eu fique aqui? Não, eu vou com vocês!
Fei Fong Wong suspirou, acenando negativamente. Houvesse o que houvesse, sua decisão estava tomada. Não importando o que tivesse de fazer ou dizer... Elly não iria.
_ Não. É perigoso demais...
_ Por quê? Eu já estive em muitas situações perigosas antes. Essa não é a primeira vez!
_ Eu disse NÃO – Fei deu-lhe as costas – Nós não podemos levar você. Por favor, entenda!
_ Não, eu quero ir! – Elly insistiu, apertando as próprias mãos – Nós estivemos lutando juntos todo esse tempo! De repente, você vem e me diz para não ir?! Eu simplesmente não entendo!!
Fei tornou a suspirar. Os amigos estavam todos reunidos ali, e pelas expressões em seus rostos, não entendiam sua súbita resolução melhor do que Elly, a não ser talvez Citan. Mas o catedrático também não parecia concordar com ele, o que significava que estava sozinho dessa vez.
_ Essa luta não é como nenhuma outra! – Fei voltou-se novamente, encarando-a – É uma batalha pela sabedoria criada por deus. É vida ou morte. Quem quer que a controle vai se tornar o verdadeiro dominador do mundo! É óbvio que o Ministério vai trazer as tropas mais fortes possíveis. Não há qualquer garantia de que você vá voltar viva!
_ Mas é exatamente por isso que eu quero ir... – Elly começou novamente, e Fei baixou a cabeça e acenou com impaciência.
_ Ah... Você não tem a menor idéia, não é...?
_ Do quê?! Não tenho a menor idéia do quê, Fei?
_ Se o inimigo fosse apenas o Ministério, ou meras armas mecânicas, estaria tudo bem – Fei respondeu, voltando os olhos baixos para Elly – Mas a maioria dos inimigos será feita daqueles que um dia foram humanos... Humanos iguais a você e eu!
Elly hesitou. Não pensara nisso até então, mas ele estava certo. Não era mais apenas uma batalha de Gears, ou tropas.
_ Eu os vi naquelas instalações... – Fei murmurou, a mão sobre o ombro dela – Gears que foram feitos de humanos. Eram iguais ao Hammer... Acha que conseguiria destruí-los, agora que sabe disso?! A fim de salvar a nós mesmos, pode mesmo dizer que conseguiria matar aqueles que um dia foram nossos amigos?!
Elly abriu a boca para responder, mas não disse palavra. Ter que eliminar antigos amigos... E ela conhecera tanta gente em Solaris... Seria capaz de destruí-los, mesmo no calor da batalha? Elly deu-lhe as costas, e Fei pressionou a vantagem que conseguira.
_ E então, ainda quer ir, sabendo disso?! – voltou-se de costas para ela – Você nem sequer consegue matar uma pessoa. A sua presença seria um empecilho durante a luta. Você... Só ia ficar no caminho.
Elly já ouvira o bastante, ao que parecia. Baixando os olhos ela correu, desviando-se dos outros em seu caminho e tomando o rumo de seu próprio quarto na Yggdrasil. Fei soube, ao ouvir o som da porta abrindo e fechando lá embaixo, que conseguira o que queria. Mesmo assim, não sentia qualquer satisfação nisso.
_ Aí, Fei – Bart perguntou – Você não acha que meio pesado demais dessa vez, não?
_ Nós não podemos culpá-la – Citan comentou do lado oposto, os braços cruzados e a cabeça baixa dando-lhe um ar ainda mais sério do que de costume – Ao menos, deveríamos entender seus sentimentos.
_ Eu sei como Elly se sente – Fei retrucou, desviando o rosto – Eu sabia que ela não teria me escutado se eu simplesmente tivesse dito, ‘Você não vem!’... Já que ela lutou junto a nós por tanto tempo, e tudo o mais... Foi por isso que eu tive que explicar a ela desse jeito.
Ele voltou-se para os amigos. Todos continuavam a olhar para ele com reprovação, e ele balançou a cabeça.
_ As pessoas reunidas em Nisan precisam de Elly. Ela precisa perceber o quanto as pessoas estão dependendo dela. Não posso colocá-la numa situação perigosa...
_ Mas, a forma como você disse foi um pouco rude – Margie comentou.
_ Você não precisava ter sido tão frio – Billy apoiou – Ela estava chorando, sabe?
Sim, ele sabia. Fei tornou a dar as costas para todos, parecendo de repente muito interessado no estandarte da Yggdrasil exposto na parede.
_ Mas...
_ Eu estou certo de que ela entende isso – disse Citan, e Bart concordou.
_ Eu também acho. Talvez seja você quem não entende?
_ Eu...? – Fei olhou para as próprias mãos – Eu não entendo?
_ O coração... de uma dama...? – Margie deu-lhe as costas. E Billy sorriu com gentileza.
_ Ela quer ir, estar com você, Fei... Até o fim.
_ Isso.
Fei não disse coisa alguma, mantendo o rosto baixo para que não vissem o quanto devia estar vermelho, e sem notar que àquela altura, o estranho seria que ninguém tivesse percebido. Aproveitando-se do silêncio e para quebrar o gelo, Bart subiu na mesa de reuniões.
_ Se eu fosse você... – ergueu a mão direita como se estivesse num palco e disse com atitude – Eu ia abraçar ela bem apertado e diria ‘Vamos os dois, juntos!’... Desse jeito!
_ Sério? – perguntou Margie, olhando significativamente para Bart, que imediatamente pareceu se dar conta do que estava dizendo.
_ Hã... Não... Digo, er...
_ Jovem mestre, não vá exagerar – pediu Maison.
_ Ah, fica quieto!
Fei sorriu, ainda encabulado. Só mesmo Bart... E o amigo desceu da mesa e acenou com a cabeça na direção por onde Elly se fora.
_ Tanto faz. Por que você não vai lá, e pede pra ela vir com você? Quer ela vá ou não, você devia expressar seus sentimentos em palavras. Se realmente se importa com ela, tem que ir dizer isso.
_ Expresse seus sentimentos... certo? – Citan pediu com gentileza, e Fei tornou a ficar sem jeito.
_ E-eu... Eu não...!
_ Tarde demais – Bart estava olhando para ele com ar de pouco caso – Todo mundo já sabe.
_ Não está sendo honesto consigo mesmo, está? – perguntou Citan, com aquele mesmo ar de quem sabia demais, e ao que parecia, todos tinham a mesma opinião.
_ Eu concordo – Margie.
_ Fei... Diz... De uma vez – Emeralda.
_ Anda Fei, vai de uma vez! – Margie exigiu – Vai atrás dela! O quê está esperando?
_ Eu não sou muito bom nesse tipo de coisa – Rico murmurou – Mas Hammer costumava me dizer, ‘Seja gentil com as mulheres’.

A porta do aposento abriu e fechou-se, e Elly não precisava se voltar para saber quem era. O quarto estava na penumbra, iluminado apenas pelas luzes de emergência, e Fei começou desajeitadamente a falar:
_ Ah... Desculpe pelo que acabou de acontecer... Elly, me perdoe. Mas, eu quero explicar...
Ela permaneceu em silêncio, imóvel, de pé no fundo do aposento e sem dar qualquer indicação de que percebera que não estava mais sozinha. Suspirando, Fei prosseguiu:
_ Agora, pela primeira vez, pessoas da terra e de Solaris estão se tornando um só povo. Mas, até então, nem todos eles são fortes como a tripulação desta nave, ou como as pessoas em Shevat. Mesmo nós quase perdemos a visão do nosso futuro às vezes... Então, pode imaginar o que as pessoas comuns devem passar. E... é por isso que as pessoas precisam de alguém como você, alguém de quem depender. Como uma luz pra nos guiar.
“Você libertou os corações das pessoas que tinham sido usadas como ferramentas por aquele Ministério por centenas de anos. Elly, foi você! E agora o seu corpo não pertence mais apenas a você. É por isso que eu não posso deixar que você corra qualquer perigo. E é por isso que eu não quero que você lute mais.”
_ ... É engraçado, não é?
Se ele esperava que ela dissesse qualquer coisa, não devia ser nada assim. Depois de um instante de silêncio, Elly ergueu a cabeça e disse, ainda sem se voltar:
_ Nós costumávamos ser inimigos, mas agora estamos juntos desse jeito... No começo... Eu acho que via a mim mesma em você. Nós parecíamos nos sobrepor... Você estando numa situação parecida com a minha. Quando estava com você, eu não me sentia sozinha ou apreensiva. Foi por isso que eu pensei que gostava de você... Mas, não era isso. Eu simplesmente não tinha a coragem pra olhar para o meu verdadeiro eu. Eu me voltei para você pra fugir disso tudo... e confundi aquilo com amor.
Ela finalmente voltou-se, seus belos olhos azuis claramente visíveis na penumbra, e Fei vagamente percebeu que não estava tão sem jeito quanto ficara há pouco. Era como se aquele fosse o modo como as coisas tinham que ser. E Elly prosseguiu:
_ Mas, é diferente agora. Eu posso enfrentar meus próprios problemas. Eu sou eu... E você é você. Ficou tudo claro para mim agora. E eu também aprendi que realmente preciso de você... Não porque precise de você como um santuário para os meus problemas. Preciso de você porque eu verdadeiramente te amo.
_ Elly...
_ Eu sei o que está dizendo, Fei – ela conseguiu abrir um sorriso fraco – Eu sei por que está tão preocupado com a minha segurança... Mas, sabe, eu... Estou assustada. Eu temo que nós possamos nunca mais ver um ao outro... Simplesmente tenho essa impressão.
_ Não se preocupe – ele meneou a cabeça – Eu não vou morrer.
_ Não, não é isso – e ela baixou os olhos, parecendo assustada – É algo completamente diferente. É como se eu estivesse sendo dilacerada por alguma coisa à qual eu não posso resistir... Como se não fosse mais eu mesma. Mesmo que você volte em segurança... Ainda assim... A inquietude é tão grande...!
“É por isso que eu preciso ir com você – ela ergueu os olhos novamente, e seu olhar era tão intenso que parecia queimar – Eu não consigo suportar ficar separada de você”.
_ Eu... me sinto do mesmo jeito – ele acenou, os olhos baixos – Desde o dia em que conheci você naquela floresta. Acho que é a mesma sensação que você tem tido... Eu também estava correndo pra você. Mas eu tenho que resolver meus próprios problemas. Não posso despejar meus problemas em você.
Fei apertou os punhos diante de si, e a braçadeira que Taura lhe dera ficou mais visível. Tocando nela, ele continuou:
_ Existe outro ‘eu’... Id... Está dentro de mim. Eu temo que a qualquer momento Id possa despertar em meu interior. Você é a única que foi capaz de me impedir de me entregar ao Id. Foi porque você estava sempre ao meu lado que eu ainda fui capaz de não me perder.
Fei ergueu seus olhos, a intensidade dos olhares deixando claro o quanto um precisava do outro. Caminhando até ela, Fei murmurou:
_ Eu prometo a você que vou retornar. E... É por isso... Elly, eu quero que você seja a minha razão pra voltar... Que seja o meu lar, para o qual eu possa voltar. Elly... Se você esperar pelo meu retorno, mesmo que estejamos em lugares totalmente diferentes... Desde que esteja ao meu lado, eu sei... Sei que serei capaz de fazer qualquer coisa.
_ Ah, Fei...
Os olhos de Elly e os de Fei se fecharam, seus rostos aproximaram-se... E tudo o mais que tinham a dizer não foi dito em palavras.

Na manhã seguinte, Fei terminou de se vestir e ficou de pé, tentando sair do quarto em silêncio.
_ Você já vai?
Ele se voltou, sorrindo com um pouco de pesar para Elly, que estava sentada na cama.
_ É, já. Desculpe, eu te acordei?
_ Está tudo bem – ela sorriu com serenidade – Eu fiquei acordada o tempo todo.
_ O tempo todo?
_ A-hã. Estava olhando pra você enquanto dormia. E, antes que eu me desse conta, era de manhã.
Fei baixou os olhos, as duas faces ardendo de repente. Não pensava que ainda fosse ficar assim perto dela.
_ B-bem, eu... Eu já vou.
_ Tá bem então – o sorriso terno dela se ampliou um pouco – Tome muito cuidado lá fora.
_ Tá, eu vou, sim... Ah! Pode guardar isso pra mim?
Aproximando-se dela, ele soltou algo que trazia em seu pescoço e entregou a Elly.
_ O que é isso? Parece um... pingente?
_ Eu não sei de quem é – ele explicou – Parece que estava em mim quando eu fui trazido pra Lahan. Pode ser meu, ou pode ser...
_ Pode ser...?
Fei sacudiu a cabeça. Apesar de tudo o que fora dito, e feito, ele descobriu que ainda não conseguia falar das visões que às vezes tinha, de pessoas e lugares que eram tão desconhecidos e ao mesmo tempo tão familiares. Nem mesmo com Elly.
_ Ah, nada. Só tome conta disso pra mim, tá bom?
_ Tudo bem – ela sorriu de novo, colocando o crucifixo cristalino em si mesma – Eu vou guardar pra você.
_ Obrigado – ele sorriu calorosamente para ela – Bem... Acho que isso é até logo, então!
_ Ah... Fei?
_ Hm?
_ ... Obrigada.
Ele acenou afirmativamente com a cabeça, indo até a porta do aposento e detendo-se ainda uma vez antes de sair. Elly... Por ela, ele precisava voltar. E foi levando consigo esse pensamento que ele saiu.

A manhã já durava algumas horas e Elhaym Van Houten estava em Nisan, olhando na direção do deserto de Aveh e perdida em pensamentos. Margie aproximou-se dela em certo momento e perguntou:
_ Elly. Você tem certeza disso? Não tem vontade de ficar com ele?
_ É, mas... – ela juntou as mãos e acenou que sim – É porque eu acredito nele. Apenas ficar junto de uma pessoa não é necessariamente uma indicação de amor, é?
_ Mas... – Margie emburrou um pouco – Homens são tão egoístas...! Quando algo grande acontece, eles dizem ‘É perigoso... Você não pode vir!’ Eles tratam as mulheres como se fôssemos fracas! Se bem que – e baixou os olhos – é verdade mesmo que eu não consigo ajudar muito o Bart e os outros...
_ Isso não é verdade – Elly voltou-se para Margie, o sorriso sereno sempre em seu rosto – Todo mundo quer alguém especial esperando por eles. Alguém que vai proteger um lugar para o qual eles possam voltar. Se não se tem esse tipo de paz de espírito, então não se é capaz de fazer coisa alguma.
Elly tornou a olhar na direção do deserto. Ela gostaria de estar junto a Fei quando a batalha viesse... Mas agora, não se sentia tão mal por ficar para trás.
_ Os homens tentam ser fortes, e aparentar isso... E pra falar a verdade... – ela voltou-se para Margie e sorriu mais abertamente – É bonitinho o jeito como fazem isso, não é verdade?
_ É – Margie também riu – Você tem razão.
_ Seja como for – Elly suspirou, voltando-se para a cidade – Nós também temos coisas para fazer agora. E, enquanto as fazemos, vamos rezar para que todo mundo volte em segurança.
_ Para deus?
_ Não – Elly meneou a cabeça, juntando as mãos e fechando seus olhos, parecendo incrivelmente solene – Para os nossos sentimentos mais interiores, em que todos acreditam.
Elly se deixou ficar em silêncio por um momento, os olhos fechados e pedindo em silêncio que Fei e os outros voltassem bem. E quando tornou a olhar para Margie, viu que a outra olhava para ela com uma expressão curiosa.
_ O que houve?
_ Eu sabia... É, deve ser isso!
_ O quê?
_ Elly, é como todo mundo diz! – Margie explicou, parecendo muito agitada – Você deve ser uma reencarnação de Sophia! Não há como você conhecer os ensinamentos da Seita de Nisan, mas o que você diz... Bem, é exatamente o mesmo que Sophia sempre dizia.
_ É... Pode ser – Elly murmurou, voltando-se para a cidade com ar carinhoso – Da primeira vez em que visitei esta cidade, eu tive a sensação mais incrível... Familiar... Triste... Como se eu tivesse estado aqui muitas vezes em meus sonhos...
Seus olhos passearam sobre os telhados antigos das casas de Nisan com uma mistura de tristeza e saudade enquanto ela tornava a unir suas mãos, quase numa prece, e aspirava profundamente o ar da manhã.
_ Eu sei onde é cada aposento, e o que está dentro deles. Eu simplesmente... sei que devo ter estado aqui no passado distante.
“Antes, se você tivesse falado disso, eu teria me desfeito da impressão com uma risada. Mas agora... Agora, eu posso mais ou menos acreditar. As coisas que eu não pude fazer naquela época... Provavelmente, eu estou tentando fazer agora.”
_ Coisas que não pôde fazer? – Margie perguntou, olhando para ela com curiosidade. E Elly tornou a olhar para ela, acenando com a cabeça e sorrindo.
_ Isso mesmo... Coisas que não pude fazer...

  

COMO UM LOBO ORGULHOSO, SOZINHO NO ESCURO

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