Capítulo II – É o quê, ô??
Numa ocasião rara, tanto Angélica quanto Clóvis tinham a mesma
expressão confusa e admirada no rosto, enquanto seguiam Edo Jos até a sala de
estar, que poderia muito bem ser a sala de leitura de uma biblioteca qualquer;
estantes com livros até onde a vista podia alcançar, de parede a parede,
escadas aqui e ali para as prateleiras mais altas e sofás confortáveis num
espaço amplo, com vários livros abertos aqui e ali. A típica sala de estar de
um bibliotecário, ou escrivão. Talvez até um professor aposentado. Mas, se
podiam acreditar no simpático anfitrião... estavam na presença do rei de
Valência.
_ Aqui – ele voltou dos fundos da casa com uma travessa, um jarro
transparente de bebida e quatro copos – Se vieram andando desde a cidade mais
próxima, aposto que estão com sede. Por favor, sirvam-se.
Angélica procurou restabelecer a ordem de seus próprios pensamentos
com aquilo. Agradecendo, ela serviu a si mesma e ao colega e perguntou:
_ Desculpe, senhor, mas... nos trouxe quatro copos?
_ Ah, sim, é que está quase na hora da minha esposa chegar – o
anfitrião olhou para a porta, esperançoso – Imagino que ela também vai querer
limonada.
_ Poxa, obrigado! – Clóvis se adiantou, apanhando o próprio copo e se
servindo de um gole generoso, antes que Angélica pudesse sinalizar que não –
Nem tinha percebido como estava com sede, até o senhor servir. E isso tá ótimo!
_ Heh, agradeço – o anfitrião sorriu – Eu adoro limonada; ainda não
descobri nada melhor pra curar uma caminhada longa no sol.
Enquanto os dois homens gargalhavam, Angélica se serviu, procurando
pensar depressa. Se houvesse alguma coisa na bebida, seu parceiro tolo havia
consumido; esperava que fosse algo para o qual tivesse antídoto. E embora
tivesse agradecido, ela apenas fingiu levar o copo à boca, mantendo os lábios
fechados enquanto o anfitrião se servia e, após um primeiro gole generoso,
perguntasse:
_ Agora, pelo que entendo, estavam à minha procura. Como posso ser
útil?
_ Sabe, o senhor não parece nem um pouco com o que dizem – Clóvis
tornou a dizer, antes que Angélica pudesse formular qualquer pergunta – Aquela
história sobre...
E ele se calou, enquanto a parceira pisava na ponta de seu pé, com
discrição e força. Era naqueles momentos que Angélica se arrependia de suas
escolhas.
_ P... Por favor, perdoe os modos do meu colega – a jovem maga
balbuciou – É só que... Bem, estamos muito surpresos.
_ Não precisa se desculpar, mocinha – o anfitrião sorriu, meneando a
cabeça – Não é a primeira, e duvido que vá ser a última vez que escuto isso. ‘Cruel
Soberano’, não era isso? Acho que, ao menos, posso ficar satisfeito de não
parecer com isso. E, falar a verdade, eu acho muito engraçado ver as caras de
vocês quando chegam e topam comigo.
_ Er... ‘Vocês’? – os instintos de Angélica soaram o alerta – Eu...
Não sei se entendi muito bem.
_ Pode ser franca, menina – por um momento, o reflexo da luz nos
óculos de aro redondo ocultou os olhos de Edo Jos por trás das lentes – Imagino
que tenham vindo me matar, não foi? Acontece o tempo todo.
Angélica e Clóvis ficaram atentos, alertas, ambos esperando a qualquer
momento por um ataque daquele que, até ali, parecera um senhor inofensivo à
beira da meia idade. E, após alguns segundos, a maga se deu conta de que algo
continuava errado. Edo apenas continuou a beber sua limonada, como se tivesse
todo o tempo do mundo.
_ O que? – ele perguntou, baixando o copo e parecendo surpreso com a
expressão dela – Achavam que eu ia fazer alguma coisa contra vocês? Não,
mocinha, eu sou o rei, mas também sou parte do reino. Sou tão incapaz de
violência ou assassinato quanto qualquer um neste território, ainda que seja
sutil. Pode beber sem medo, eu não envenenei a bebida. Não teria bebido, sabe?
_ ... Poderia ter ingerido um antídoto, de antemão – ela murmurou,
agora completamente atenta, enquanto Clóvis parecia se dar conta finalmente do
risco que correra, bebendo sem pensar duas vezes – Ou preparado um copo neutro
para si mesmo...
_ Você é muito esperta – ele tornou a sorrir, aquela luz estranha nas
lentes ocultando seus olhos de novo – Sim, eu podia muito bem ter feito isso,
não é? Assim, pareceria que estava tudo certo e seguro, enquanto induziria
vocês a se envenenarem... ou coisa pior. Algo que fizesse por valer a fama do
Cruel Soberano...
_ Quer parar de fazer terrorismo, Edo? – uma voz despreocupada veio da
porta de entrada – Não ajuda nada a relaxar, seu besta!
Angélica e Clóvis se voltaram, deparando com uma bonita senhora que
acabara de chegar. E o anfitrião, tendo visto quem chegara, saudou:
_ Oláááááááá, enfermeira!
_ Francamente – ela deu um muxoxo – Você não vai cansar nunca dessa
piada?
_ Não consigo – Edo sorriu abertamente – Você fica muito fofa quando faz
essa cara.
A bronca bem humorada da esposa, a reação divertida, tudo arruinou a
impressão de ameaça que Angélica tivera, e ela tornou a ficar completamente
perdida. Estava confirmado em fatos, aquele ‘era’ o Rei Edo Jos, de Valência.
Logo, ele ‘deveria’ ser o Cruel Soberano... Mas simplesmente não podia ser.
_ Espera aí, dona – Clóvis ficou de pé, incapaz de tentar coordenar os
pensamentos em silêncio como a colega – É isso mesmo? ‘Esse’ tiozinho... Quero
dizer, o seu marido, ele é ‘mesmo’ o Rei Edo? Mas não pode!
_ ... É por causa da coroa? – o anfitrião perguntou, apontando para a
própria cabeça – Não gosto de ficar usando. Mas se quiser, eu vou buscar...
_ Ele deve estar falando daquela história, de novo – a esposa suspirou
– Eu já disse que você devia fazer alguma coisa quanto a isso, Edo!
_ Ah, eu sei, eu sei – ele acenou que sim, parecendo encabulado – É só
que, bem, você sabe... Eu acabo me concentrando em uma coisa, em outra... e
isso vai ficando.
_ Sei – a esposa continuou olhando para o marido com ar vazio – Se não
te conhecesse, Edo... Você gosta dessa reputação, isso sim.
_ Pode ser – ele sorriu – Você me conhece mesmo. Escute, acho que
seria melhor se...
_ Tá, tudo bem – ela meneou a cabeça, afastando-se rumo às escadas do
sobrado – Explique, também acho que é melhor. Vou tomar um banho pra relaxar;
tivemos um dia puxado na clínica.
E ela subiu, enquanto Edo voltava a se sentar, seguindo a esposa com
os olhos até que ela sumisse de seu campo de visão.
_ Acho que também ouviram falar da minha rainha, Marisa? – ele olhou
de um para outro, aparentemente frustrado com a falta de reação – Não? Hmph,
isso sim é motivo pra acabar com a história; quem já ouviu falar de um ‘Cruel
Soberano’ sem uma ‘senhora’...?
_ ... Parece achar que isso tudo é uma grande piada – Angélica
comentou, parecendo na iminência de perder completamente a paciência. E Edo
obviamente se deu conta disso, porque meneou a cabeça.
_ Não é uma escolha minha, mocinha. Achei engraçado quando fiquei
sabendo, é claro, mas nunca quis essa reputação. Mas, presumo que vá fazer mais
sentido se eu explicar desde o começo...
“Valência sempre foi próspera – Edo começou – E, claro, isso trazia
seu próprio número de parasitas. Conselheiros, reis, senadores... Chame do que
quiser, todos queriam sua parte do bolo. E por mais que o povo reclame, no
fundo, são tão responsáveis quanto os parasitas. Afinal de contas, ninguém está
realmente disposto a assumir qualquer responsabilidade; só querem alguém a quem
culpar pela própria preguiça em mexer os traseiros e resolverem o que são
capazes.”
“E isso sempre me incomodou – ele baixou os olhos, parecendo triste
por um momento – Várias vezes tentei resolver o que estava em meu alcance, mas
as pessoas simplesmente não colaboravam. Várias vezes, na minha função de escrivão,
fui enviado para tomar notas sobre os problemas, que deveriam ser encaminhados
para órgãos públicos responsáveis, de acordo com o problema. Mas eu tanto via
burocracia e um jogo de empurra dos funcionários responsáveis quanto pessoas
que, sem saber ou se importar se eu podia ouvir, buscavam conseguir um
benefício ou serviço do qual não precisavam, ou que poderiam conseguir por si
mesmos. Por muitas noites perdi meu sono, pensando que não havia solução para o
problema; como você mantém de pé um edifício onde nenhuma das vigas suporta o
peso que deveria?”
_ ... E o senhor... encontrou uma resposta? – Angélica perguntou,
surpresa ao perceber que estava de respiração presa.
_ Na verdade, sim – ele bebeu um pouco de limonada – Entende, eu nunca
tentei ‘ser’ o rei; só queria que o Globo de Ordem reconhecesse meu comando. Resumindo
uma história longa, o que programei no Globo foi ‘que cada pessoa de Valência
seja responsável pelos próprios atos, e colha as consequências e recompensas
daquilo que fizer. E aqueles que violarem os direitos de outros serão julgados
pelo próprio povo, e punidos de acordo com a infração cometida.’
Clóvis continuou parecendo confuso, mas Angélica começou a entender
tudo; o reino, como ela vira, a irritação sem opressão das pessoas e até mesmo
o título de Edo, enquanto o rei continuou a explicar.
_ Garanti que cada pessoa do reino soubesse do que havia acontecido,
assim que completei a nova programação; o programa do Globo de Ordem
transmitiria a consciência sobre a nova lei assim que fosse aplicada. Em escala
menor e maior, em pouco tempo, cada pessoa descobriu que ‘teriam que vigiar a
si mesmos’, assumindo responsabilidade pelo que fizessem. E, bem, eles não
gostaram nada disso. Quanto mais o tempo passava, mais eles ficavam
angustiados, tendo que renunciar a velhos vícios, abrir mão de corrupção e até
mesmo se portarem melhor uns com os outros, porque aparentemente nada deixa o
povo mais animado do que aplicar a nova lei; todos adoram poder vigiar uns aos
outros, se acusarem e, principalmente, se punirem. Confesso, nem eu imaginei
que daria tão certo; no fim das contas, não apenas criei um sistema de governo
eficiente, também coloquei o mais perigoso, mau humorado e indestrutível
monstro de todos de guarda! Digo, você pode decapitar uma medusa, esmagar as
cabeças de uma hidra e até encontrar uma forma de matar um dragão... Mas destruir
o povo, quando você é parte dele? Cada pessoa em Valência fica imediatamente a
par de qualquer delito que um cidadão cometa em nosso território, e posso
garantir, não há ninguém mais ansioso em aplicar punição do que o próprio povo.
Eu sequer preciso me meter.
_ ... E por isso, é chamado de ‘Cruel’ – Angélica murmurou, encaixando
a última peça do quebra-cabeça – Porque deixa sobre as costas deles a
responsabilidade sobre si mesmos, e cada um precisa vigiar a própria conduta
todos os dias. De certa forma, é como fazer com que caminhem sobre pontas de
lanças, sem qualquer liberdade para extravasar... Uma grande crueldade, sim. É
por isso, presumo, que não haja mendigos nas ruas, também?
_ Cada pessoa é responsável pelo que consegue, ou ‘não’ consegue – Edo
assentiu – Vários nobres inúteis se converteram em sem-teto em menos de uma
semana; como o que produziam era ‘nada’, era isso que colhiam. Se ouvi bem,
parece que essas pessoas deixaram o país em levas, e até o final da primeira
semana, quase não havia mais deles.
Clóvis parecia estar chegando a algum tipo de lenta realização sobre o
que estava mesmo acontecendo, e Angélica ponderou sobre o que fazer a seguir.
Um sistema simples e brilhante de governo, na verdade; nenhum corrupto ou
aproveitador passaria despercebido, e o povo, aquela criatura manhosa e cheia
de cabeças, estaria apenas ansiosa demais para devorar e destroçar qualquer um que
tirasse vantagem deles. Ao mesmo tempo, forçar o povo a agir daquela maneira sem
que qualquer delito seu passasse despercebido era mesmo um tipo de crueldade.
Era natural do ser humano, afinal de contas, não ser correto o tempo todo...
_ E, acho que deveria mencionar – Edo acrescentou, os olhos novamente
ocultos pelo reflexo da luz nas lentes de seus óculos – que embora eu ainda
‘possa’ ser morto por pessoas de fora, vocês deveriam pensar bem. Minha morte
ainda estaria sujeita à regra programada no Globo; cada cidadão de Valência vai
descobrir, e quem quer que o faça vai ser julgado pelo povo da forma que
julgarem mais adequada ao delito. O que acham que fariam com uma dupla de
assassinos? Ainda que sejam os ‘heróis’ que destruam o Cruel Soberano, serão punidos
de acordo; acho que isso significa morte.
_ M-morte...? – Clóvis balbuciou, enquanto o olhar de Angélica
escurecia – Nós...?
_ ... Presumindo, é claro, que alguém quisesse nos punir – Angélica
murmurou, encarando o rei – Se consideram tamanho sofrimento, e soubessem que o
matamos...
_ É verdade, mocinha – Edo meramente assentiu, não parecendo preocupado
– Deixado por conta do povo, não dá pra saber como, realmente, isso terminaria.
Mas deveriam levar dois últimos fatos em conta, antes de começar. Primeiro, apesar
do que muitos parecem acreditar, eu nunca disse que minha morte desativaria a
regra que programei no Globo de Ordem; não sei de onde tiraram essa idéia.
Angélica comprimiu os dedos, as mãos em punhos apertados, ponderando o
que ouvira. Fazia sentido, e era bem provável; Edo era astuto o bastante para
ter calculado sua eventual morte. Mas não importando qual o caso...
_ Segundo, e mais importante para vocês – ele sorriu novamente por
trás das lentes dos óculos, como se soubesse o que ela estava pensando – Se
tivessem contratado assassinos, e pudessem conseguir o serviço feito sem
pagar... Pagariam por isso?