domingo, 27 de agosto de 2017

Capítulo Dois

Capítulo II – É o quê, ô??


Numa ocasião rara, tanto Angélica quanto Clóvis tinham a mesma expressão confusa e admirada no rosto, enquanto seguiam Edo Jos até a sala de estar, que poderia muito bem ser a sala de leitura de uma biblioteca qualquer; estantes com livros até onde a vista podia alcançar, de parede a parede, escadas aqui e ali para as prateleiras mais altas e sofás confortáveis num espaço amplo, com vários livros abertos aqui e ali. A típica sala de estar de um bibliotecário, ou escrivão. Talvez até um professor aposentado. Mas, se podiam acreditar no simpático anfitrião... estavam na presença do rei de Valência.
_ Aqui – ele voltou dos fundos da casa com uma travessa, um jarro transparente de bebida e quatro copos – Se vieram andando desde a cidade mais próxima, aposto que estão com sede. Por favor, sirvam-se.
Angélica procurou restabelecer a ordem de seus próprios pensamentos com aquilo. Agradecendo, ela serviu a si mesma e ao colega e perguntou:
_ Desculpe, senhor, mas... nos trouxe quatro copos?
_ Ah, sim, é que está quase na hora da minha esposa chegar – o anfitrião olhou para a porta, esperançoso – Imagino que ela também vai querer limonada.
_ Poxa, obrigado! – Clóvis se adiantou, apanhando o próprio copo e se servindo de um gole generoso, antes que Angélica pudesse sinalizar que não – Nem tinha percebido como estava com sede, até o senhor servir. E isso tá ótimo!
_ Heh, agradeço – o anfitrião sorriu – Eu adoro limonada; ainda não descobri nada melhor pra curar uma caminhada longa no sol.
Enquanto os dois homens gargalhavam, Angélica se serviu, procurando pensar depressa. Se houvesse alguma coisa na bebida, seu parceiro tolo havia consumido; esperava que fosse algo para o qual tivesse antídoto. E embora tivesse agradecido, ela apenas fingiu levar o copo à boca, mantendo os lábios fechados enquanto o anfitrião se servia e, após um primeiro gole generoso, perguntasse:
_ Agora, pelo que entendo, estavam à minha procura. Como posso ser útil?
_ Sabe, o senhor não parece nem um pouco com o que dizem – Clóvis tornou a dizer, antes que Angélica pudesse formular qualquer pergunta – Aquela história sobre...
E ele se calou, enquanto a parceira pisava na ponta de seu pé, com discrição e força. Era naqueles momentos que Angélica se arrependia de suas escolhas.
_ P... Por favor, perdoe os modos do meu colega – a jovem maga balbuciou – É só que... Bem, estamos muito surpresos.
_ Não precisa se desculpar, mocinha – o anfitrião sorriu, meneando a cabeça – Não é a primeira, e duvido que vá ser a última vez que escuto isso. ‘Cruel Soberano’, não era isso? Acho que, ao menos, posso ficar satisfeito de não parecer com isso. E, falar a verdade, eu acho muito engraçado ver as caras de vocês quando chegam e topam comigo.
_ Er... ‘Vocês’? – os instintos de Angélica soaram o alerta – Eu... Não sei se entendi muito bem.
_ Pode ser franca, menina – por um momento, o reflexo da luz nos óculos de aro redondo ocultou os olhos de Edo Jos por trás das lentes – Imagino que tenham vindo me matar, não foi? Acontece o tempo todo.
Angélica e Clóvis ficaram atentos, alertas, ambos esperando a qualquer momento por um ataque daquele que, até ali, parecera um senhor inofensivo à beira da meia idade. E, após alguns segundos, a maga se deu conta de que algo continuava errado. Edo apenas continuou a beber sua limonada, como se tivesse todo o tempo do mundo.
_ O que? – ele perguntou, baixando o copo e parecendo surpreso com a expressão dela – Achavam que eu ia fazer alguma coisa contra vocês? Não, mocinha, eu sou o rei, mas também sou parte do reino. Sou tão incapaz de violência ou assassinato quanto qualquer um neste território, ainda que seja sutil. Pode beber sem medo, eu não envenenei a bebida. Não teria bebido, sabe?
_ ... Poderia ter ingerido um antídoto, de antemão – ela murmurou, agora completamente atenta, enquanto Clóvis parecia se dar conta finalmente do risco que correra, bebendo sem pensar duas vezes – Ou preparado um copo neutro para si mesmo...
_ Você é muito esperta – ele tornou a sorrir, aquela luz estranha nas lentes ocultando seus olhos de novo – Sim, eu podia muito bem ter feito isso, não é? Assim, pareceria que estava tudo certo e seguro, enquanto induziria vocês a se envenenarem... ou coisa pior. Algo que fizesse por valer a fama do Cruel Soberano...
_ Quer parar de fazer terrorismo, Edo? – uma voz despreocupada veio da porta de entrada – Não ajuda nada a relaxar, seu besta!
Angélica e Clóvis se voltaram, deparando com uma bonita senhora que acabara de chegar. E o anfitrião, tendo visto quem chegara, saudou:
_ Oláááááááá, enfermeira!
_ Francamente – ela deu um muxoxo – Você não vai cansar nunca dessa piada?
_ Não consigo – Edo sorriu abertamente – Você fica muito fofa quando faz essa cara.
A bronca bem humorada da esposa, a reação divertida, tudo arruinou a impressão de ameaça que Angélica tivera, e ela tornou a ficar completamente perdida. Estava confirmado em fatos, aquele ‘era’ o Rei Edo Jos, de Valência. Logo, ele ‘deveria’ ser o Cruel Soberano... Mas simplesmente não podia ser.
_ Espera aí, dona – Clóvis ficou de pé, incapaz de tentar coordenar os pensamentos em silêncio como a colega – É isso mesmo? ‘Esse’ tiozinho... Quero dizer, o seu marido, ele é ‘mesmo’ o Rei Edo? Mas não pode!
_ ... É por causa da coroa? – o anfitrião perguntou, apontando para a própria cabeça – Não gosto de ficar usando. Mas se quiser, eu vou buscar...
_ Ele deve estar falando daquela história, de novo – a esposa suspirou – Eu já disse que você devia fazer alguma coisa quanto a isso, Edo!
_ Ah, eu sei, eu sei – ele acenou que sim, parecendo encabulado – É só que, bem, você sabe... Eu acabo me concentrando em uma coisa, em outra... e isso vai ficando.
_ Sei – a esposa continuou olhando para o marido com ar vazio – Se não te conhecesse, Edo... Você gosta dessa reputação, isso sim.
_ Pode ser – ele sorriu – Você me conhece mesmo. Escute, acho que seria melhor se...
_ Tá, tudo bem – ela meneou a cabeça, afastando-se rumo às escadas do sobrado – Explique, também acho que é melhor. Vou tomar um banho pra relaxar; tivemos um dia puxado na clínica.
E ela subiu, enquanto Edo voltava a se sentar, seguindo a esposa com os olhos até que ela sumisse de seu campo de visão.
_ Acho que também ouviram falar da minha rainha, Marisa? – ele olhou de um para outro, aparentemente frustrado com a falta de reação – Não? Hmph, isso sim é motivo pra acabar com a história; quem já ouviu falar de um ‘Cruel Soberano’ sem uma ‘senhora’...?
_ ... Parece achar que isso tudo é uma grande piada – Angélica comentou, parecendo na iminência de perder completamente a paciência. E Edo obviamente se deu conta disso, porque meneou a cabeça.
_ Não é uma escolha minha, mocinha. Achei engraçado quando fiquei sabendo, é claro, mas nunca quis essa reputação. Mas, presumo que vá fazer mais sentido se eu explicar desde o começo...
“Valência sempre foi próspera – Edo começou – E, claro, isso trazia seu próprio número de parasitas. Conselheiros, reis, senadores... Chame do que quiser, todos queriam sua parte do bolo. E por mais que o povo reclame, no fundo, são tão responsáveis quanto os parasitas. Afinal de contas, ninguém está realmente disposto a assumir qualquer responsabilidade; só querem alguém a quem culpar pela própria preguiça em mexer os traseiros e resolverem o que são capazes.”
“E isso sempre me incomodou – ele baixou os olhos, parecendo triste por um momento – Várias vezes tentei resolver o que estava em meu alcance, mas as pessoas simplesmente não colaboravam. Várias vezes, na minha função de escrivão, fui enviado para tomar notas sobre os problemas, que deveriam ser encaminhados para órgãos públicos responsáveis, de acordo com o problema. Mas eu tanto via burocracia e um jogo de empurra dos funcionários responsáveis quanto pessoas que, sem saber ou se importar se eu podia ouvir, buscavam conseguir um benefício ou serviço do qual não precisavam, ou que poderiam conseguir por si mesmos. Por muitas noites perdi meu sono, pensando que não havia solução para o problema; como você mantém de pé um edifício onde nenhuma das vigas suporta o peso que deveria?”
_ ... E o senhor... encontrou uma resposta? – Angélica perguntou, surpresa ao perceber que estava de respiração presa.
_ Na verdade, sim – ele bebeu um pouco de limonada – Entende, eu nunca tentei ‘ser’ o rei; só queria que o Globo de Ordem reconhecesse meu comando. Resumindo uma história longa, o que programei no Globo foi ‘que cada pessoa de Valência seja responsável pelos próprios atos, e colha as consequências e recompensas daquilo que fizer. E aqueles que violarem os direitos de outros serão julgados pelo próprio povo, e punidos de acordo com a infração cometida.’
Clóvis continuou parecendo confuso, mas Angélica começou a entender tudo; o reino, como ela vira, a irritação sem opressão das pessoas e até mesmo o título de Edo, enquanto o rei continuou a explicar.
_ Garanti que cada pessoa do reino soubesse do que havia acontecido, assim que completei a nova programação; o programa do Globo de Ordem transmitiria a consciência sobre a nova lei assim que fosse aplicada. Em escala menor e maior, em pouco tempo, cada pessoa descobriu que ‘teriam que vigiar a si mesmos’, assumindo responsabilidade pelo que fizessem. E, bem, eles não gostaram nada disso. Quanto mais o tempo passava, mais eles ficavam angustiados, tendo que renunciar a velhos vícios, abrir mão de corrupção e até mesmo se portarem melhor uns com os outros, porque aparentemente nada deixa o povo mais animado do que aplicar a nova lei; todos adoram poder vigiar uns aos outros, se acusarem e, principalmente, se punirem. Confesso, nem eu imaginei que daria tão certo; no fim das contas, não apenas criei um sistema de governo eficiente, também coloquei o mais perigoso, mau humorado e indestrutível monstro de todos de guarda! Digo, você pode decapitar uma medusa, esmagar as cabeças de uma hidra e até encontrar uma forma de matar um dragão... Mas destruir o povo, quando você é parte dele? Cada pessoa em Valência fica imediatamente a par de qualquer delito que um cidadão cometa em nosso território, e posso garantir, não há ninguém mais ansioso em aplicar punição do que o próprio povo. Eu sequer preciso me meter.
_ ... E por isso, é chamado de ‘Cruel’ – Angélica murmurou, encaixando a última peça do quebra-cabeça – Porque deixa sobre as costas deles a responsabilidade sobre si mesmos, e cada um precisa vigiar a própria conduta todos os dias. De certa forma, é como fazer com que caminhem sobre pontas de lanças, sem qualquer liberdade para extravasar... Uma grande crueldade, sim. É por isso, presumo, que não haja mendigos nas ruas, também?
_ Cada pessoa é responsável pelo que consegue, ou ‘não’ consegue – Edo assentiu – Vários nobres inúteis se converteram em sem-teto em menos de uma semana; como o que produziam era ‘nada’, era isso que colhiam. Se ouvi bem, parece que essas pessoas deixaram o país em levas, e até o final da primeira semana, quase não havia mais deles.
Clóvis parecia estar chegando a algum tipo de lenta realização sobre o que estava mesmo acontecendo, e Angélica ponderou sobre o que fazer a seguir. Um sistema simples e brilhante de governo, na verdade; nenhum corrupto ou aproveitador passaria despercebido, e o povo, aquela criatura manhosa e cheia de cabeças, estaria apenas ansiosa demais para devorar e destroçar qualquer um que tirasse vantagem deles. Ao mesmo tempo, forçar o povo a agir daquela maneira sem que qualquer delito seu passasse despercebido era mesmo um tipo de crueldade. Era natural do ser humano, afinal de contas, não ser correto o tempo todo...
_ E, acho que deveria mencionar – Edo acrescentou, os olhos novamente ocultos pelo reflexo da luz nas lentes de seus óculos – que embora eu ainda ‘possa’ ser morto por pessoas de fora, vocês deveriam pensar bem. Minha morte ainda estaria sujeita à regra programada no Globo; cada cidadão de Valência vai descobrir, e quem quer que o faça vai ser julgado pelo povo da forma que julgarem mais adequada ao delito. O que acham que fariam com uma dupla de assassinos? Ainda que sejam os ‘heróis’ que destruam o Cruel Soberano, serão punidos de acordo; acho que isso significa morte.
_ M-morte...? – Clóvis balbuciou, enquanto o olhar de Angélica escurecia – Nós...?
_ ... Presumindo, é claro, que alguém quisesse nos punir – Angélica murmurou, encarando o rei – Se consideram tamanho sofrimento, e soubessem que o matamos...
_ É verdade, mocinha – Edo meramente assentiu, não parecendo preocupado – Deixado por conta do povo, não dá pra saber como, realmente, isso terminaria. Mas deveriam levar dois últimos fatos em conta, antes de começar. Primeiro, apesar do que muitos parecem acreditar, eu nunca disse que minha morte desativaria a regra que programei no Globo de Ordem; não sei de onde tiraram essa idéia.
Angélica comprimiu os dedos, as mãos em punhos apertados, ponderando o que ouvira. Fazia sentido, e era bem provável; Edo era astuto o bastante para ter calculado sua eventual morte. Mas não importando qual o caso...
_ Segundo, e mais importante para vocês – ele sorriu novamente por trás das lentes dos óculos, como se soubesse o que ela estava pensando – Se tivessem contratado assassinos, e pudessem conseguir o serviço feito sem pagar... Pagariam por isso?