(...)
Cerca de uma hora depois, todos
estavam reunidos na sala do trono de Shevat, exceto por Fei, enquanto Citan
explicava aos companheiros e à Rainha Zephyr o que sabia.
_ Eu sinto muito. Não quis dizer
coisa alguma até que tivesse certeza. Eu estava numa missão secreta com ordens
do Imperador Cain para monitorar Fei. Ele me ordenou que determinasse se Fei
seria uma ameaça ao mundo ou não. ‘O Contato’... É assim que o Imperador chama
Fei.
_ É essa a sua conclusão? – perguntara Cain, quando Citan se reunira a
ele.
_ Sim, Majestade. É esta a resposta que eu mesmo escolhi.
_ Anonelbe... Você acha que pode fazê-lo?
_ Sim – Citan assentiu – Humanos têm o potencial. Gerenciadores não são
mais necessários.
_ O Contato não é nosso inimigo?
_ Sim, como diz, Majestade, se Fei é...
_ ... Então, eu deixo a situação a seu encargo... Eu pago por meu crime
ao fazê-lo...
_ ‘Anonelbe’... – Citan dissera
mais tarde, na ponte de comando da Yggdrasil, a Sigurd e Jessie – O há muito
tempo esperado homem de deus, que levará as pessoas nascidas neste mundo com
ele para um novo horizonte. Tal é o destino do ‘Contato’. É assim que o
Imperador chamava Fei... Ele não me disse por que chamava Fei assim, no
entanto.
_ Então, afinal de contas, quem é
ele? – perguntou Sigurd.
_ Ele é Fei – respondeu Citan, de
olhos baixos – Mas ele também é aquele que destruiu Elru, causou ferimentos
sérios a Kahr, afundou a Yggdrasil, matou os subordinados de Rico em Kislev...
E sacudiu a cabeça.
_ ... Preciso continuar? Ele é...
Id.
_ O que foi que disse? Id?!
_ O que quer dizer com isso? –
perguntou Jessie.
_ Ele... quero dizer, Fei... –
Citan ajeitou os óculos – tem Desordem Dissociativa de Identidade, também
conhecida mais comumente como múltipla personalidade.
_ D-dissócio... O quê?
_ Desordem Dissociativa de
Identidade – Citan voltou-se para Jessie – Ou múltipla personalidade. É uma desordem
mental onde uma pessoa tem múltiplas personalidades.
_ Isso não pode ser sério... –
murmurou Sigurd.
_ Ah, mas é muito sério – Citan
confirmou – Fei é a prova viva disso. Eu estive observando Fei, que tem uma
personalidade destruidora em seu interior, chamada ‘Id’. No início ele estava
estável... Sua dissociação não ocorria, em absoluto, enquanto ele viveu em
Lahan por aqueles três anos. Mas então, depois que Lahan foi atacada, as coisas
mudaram. Pouco a pouco, o número de incidências de sua dissociação e sua
duração começaram a aumentar. E então, em Solaris, uma manifestação completa de
Id ocorreu.
_ O que a provocou? – quis saber
Sigurd – Ele estava ótimo quando estava em Lahan, certo?
_ ... Meu palpite é que... a
aparição de Grahf afetou Fei de algum modo. Você provavelmente sabe que Fei
trabalhou com Grahf como o assassino ‘Id’ antes de ser trazido para viver em
Lahan. Foi nessa época que Elru, a terra natal de Dominia, foi completamente
obliterada. Grahf estava intencionalmente provocando a manifestação de Id por
dentro de... por falta de um termo melhor... Fei.
_ Pra que propósito? – perguntou
Jessie.
_ Para destruir Deus – Citan
tornou a ajeitar os óculos – É isso o que Grahf estava dizendo... Isso é tudo o
que sei. Embora possa haver mais a respeito... mas uma coisa é certa: Grahf
estava encorajando a manifestação de Id, mas não tinha controle adequado sobre
ele.
_ Em outras palavras – Sigurd
atalhou – era demais para ele manejar?
_ Exato.
_ Você disse ‘É tudo o que sabe,
embora possa haver mais a respeito’... – Jessie observou – O que quis dizer com
isso?
_ Explicarei isso agora. Na
verdade, este é o ponto mais importante...
E Citan falou de sua entrevista
com Fei, contido em Solaris. Ele também provocara aquela situação esperando
pelo que conseguiria descobrir numa situação única, já que dificilmente Id
daria ouvidos a quem quer que fosse de qualquer outra maneira.
_ ... Não há nada que possa fazer
– ele disse ao Fei contido nas braçadeiras, e não ficou de todo surpreso ao ver
a figura de Id se manifestar de repente, embora parecesse que ele e Fei
mantinham-se oscilando, nem um nem outro à tona completamente. Mas era Id quem
estava na superfície, pois ele respondeu:
_ Você entende bem. Bem como eu
esperava, Citan... Ou era ‘Doc’?
_ Eu estive esperando para
conhecê-lo, Id. Eu queria falar com você. Acho que é tudo graças a esta
máquina, que corta as conexões nervosas. Seja como for, o que é que Fei está
fazendo no momento?
_ Fei? De qual Fei está falando?
_ Existe mais de um?
Id não respondeu, desviando o
olhar.
_ Id?
_ ... Aquele que você chama de
Fei está adormecido.
_ Dormindo?
_ Quando eu estou acordado, ele
dorme. É por isso que ele não tem lembrança do que eu faço.
_ Por que ele não sabe?
_ É óbvio – Id deu de ombros –
Ele é meu subordinado. Ele não pode espiar as minhas memórias. Ele não devia,
de fato, nem existir. Aquele homem criou a personalidade dele à força. Fei é um
inquilino no quarto da covardia...
_ Aquele homem?
_ Nosso pai, Khan. Ele selou a
minha personalidade nos recessos mais profundos da minha consciência. Por
alguma razão inexplicável, foi então que o Fei atual nasceu.
_ Quando você disse ‘covardia’, o
que quis dizer?
Id tornou a fazer silêncio.
Aquilo parecia incomodá-lo, Citan percebeu, e mais ainda quando o outro desviou
os olhos.
_ ... Pra quê perguntar dele?
Acha que pode fazer alguma coisa?
_ É raro ser capaz de falar com
um verdadeiro esquizofrênico – Citan ajeitou os óculos – Como estudioso, estou
extremamente intrigado.
_ Com amigos como você, hein
doutor? – Id riu – Gosto de você, Citan. Mas, ele é insignificante. Afinal, ele
é só uma falha. Um covarde feito ele não merece ser a ‘existência de Fei’. Uma
figura patética que sempre fugiu da realidade. Ele nunca fez uma coisa sequer
contra mim quando eu o controlo. Um covarde que se recusou a viver. Ele devia
ter sido apagado. Mas continua a existir! Por que ele não desaparece?
Citan viu Id se mover sob a
contenção, como se quisesse se debater de frustração. As algemas continuavam
funcionando, no entanto, e Id pareceu se acalmar ao lembrar que não podia se
mover.
_ Droga... Faz a minha pele
formigar simplesmente estar no mesmo corpo que ele.
_ Vamos mudar de assunto. Eu
gostaria de saber como e por que suas personalidades foram divididas. Já que
você é quem está no controle, eu presumiria que você conhece a história.
Id desviou os olhos uma terceira
vez e Citan, como se não tivesse notado, prosseguiu:
_ Normalmente, personalidades não
se dividem como fizeram no seu caso. A não ser que houvesse algum tipo de
trauma passado.
_ Quer que eu te fale das minhas
memórias? – Id olhou para Citan novamente, e seu olhar escureceu apesar do riso
em seu rosto – Não entenda mal. Eu não te dei o direito de me questionar. Só
porque estou contido por essa máquina, não force sua sorte. Se eu realmente
quisesse, poderia quebrar as barreiras e te esmagar. Não esqueça disso.
_ Então por que não faz isso? –
as lentes dos óculos cintilaram, enquanto Citan confrontou Id sem parecer
incomodado. E Id não respondeu.
_ Quer que eu diga por quê? –
Citan aprumou os óculos – Você não tem controle completo sobre Fei, tem? O seu
controle sobre ele é incompleto. Quebrar essas restrições exigiria uma
quantidade tremenda de energia mental. Tendo gasto sua energia, Fei voltaria
novamente. Basicamente, você teria que deixar o palco. Obviamente, o dia em que
seria capaz de retornar é indeterminado. Assim, você não vai fazê-lo. Estou
enganado?
De olhos fechados, Id ficou em
silêncio por um instante, e então sorriu.
_ Então, você me conhece até
demais. Eu não tenho completo...
E silenciou de repente, como se
alguém o tivesse interrompido. Citan procurou olhar para o rosto dele.
_ O que houve, Id?
_ Você me forçou a vir. Ele está
acordando. Em circunstâncias normais, eu teria sido capaz de me aguentar. Mas
não consigo. Isso é tudo culpa daquela mulher. A existência dela torna Fei
resistente.
_ Está falando de Elly?
_ Aquela mulher... A mesma – Id
novamente pareceu incomodado, sacudindo a cabeça – Todo mundo. Devo...
eliminar...
_ Eu não entendo. Não entendo,
Id.
_ Você não precisa entender – Id
pareceu estabilizar-se novamente – Mas, quando a hora chegar, basta aceitar do
jeito que vier. Realidade e morte...
A imagem de Fei parecia mais
sólida agora, e a de Id era quase transparente. Ele ia desaparecer. Com um sorriso
cruel no rosto, ele encarou Citan uma última vez.
_ Eu vou te pegar no final... Até
mais.
_ A porção emocional da atual
personalidade de Fei foi selada por seu pai através de algum método – Citan
prosseguiu a explicação na sala do trono da Rainha Zephyr, e todos o ouviam – E
agora, com a fundação limpa da personalidade de Id. Em termos de computador, é
como construir uma personalidade simulada no topo da porção compatível do
sistema operacional.
“É essa a razão de Fei não ter
qualquer memória de seu passado. Aqueles dez anos ou mais de memórias estão sob
a supervisão de Id. Enquanto Id não entregar as memórias de livre e espontânea
vontade... não há como Fei saber, já que ele nem sequer existia antes da época
em que Id foi selado. A personalidade presente de Fei é uma forma
subdesenvolvida que foi construída com base nos três anos morando em Lahan,
estudando e aprendendo as reações de outras pessoas. Assim, ele não sabe como
lidar plenamente com situações súbitas ou de emoções fortes.”
_ Elly, você é a pessoa que
passou mais tempo com Fei – ele voltou-se para Elly – Então, eu presumo que
você possa entender melhor. Não houve vezes quando ele ficava psicologicamente
instável? Por exemplo, ele podia estar deprimido e, de repente, ter surtos de fúria...?
_ ... Sim.
_ Então, a personalidade presente
dele é apenas temporária? – perguntou Jessie.
_ Não é isso o que estou dizendo.
O Fei presente é uma personalidade única. É apenas que, estruturalmente, sua
personalidade foi construída sobre a de Id, assim colocando Fei numa hierarquia
inferior. É por isso que, quando Id está ativo, Fei não tem qualquer lembrança
a respeito.
_ Significa, então, que ele pode
eventualmente ser sobrepujado pelo Id? – Jessie questionou.
_ Sim, se fossem apenas Id e Fei
– Citan confirmou – Mas esse não parece ser o caso. Id apenas se manifesta
quando a energia mental de Fei está num estado enfraquecido. É um mistério em
si mesmo que a personalidade subordinada, de Fei tenha qualquer controle sobre
a personalidade de nível superior, de Id. É óbvio que existe uma terceira
personalidade. Id chama essa existência ‘o covarde’.
“Na minha observação, este
‘covarde’ deve ser a personalidade fundamental de Fei. Em outras palavras, a
manifestação de Id não é controlada por Fei, e sim pela personalidade conhecida
como o covarde.”
_ ... Então, isso quer dizer o
quê? – tornou a perguntar Jessie, e Citan explicou:
_ Ao mesmo tempo em que Id se
ressente contra este covarde, ele também obviamente o teme. De um certo ponto
de vista, este ‘covarde’ é quem está auxiliando o Fei atual a manter-se no
controle. Eu não sei a razão pela qual esta terceira personalidade, perdoem-me,
a personalidade fundamental de Fei, não se mostra. Se ele despertar, se tornará
um com Id. Em outras palavras, há a possibilidade de que a personalidade
completa original possa ser restaurada.
_ Isso aí é certeza? – perguntou
Jessie.
_ Provavelmente. Mas eu não sei
como despertá-lo. Antes que eu tivesse a oportunidade, Id desapareceu e se
manteve assim desde então. Basicamente, enquanto nada aconteça a Fei que ponha
em risco sua existência, Fei pode ser ele mesmo. Mas, os arredores não permitem
tal oportunidade. Seria melhor para ele viver num lugar que fosse pacífico...