sábado, 30 de julho de 2016

Capítulo Quarenta e Seis Ponto Dois

(...)

Cerca de uma hora depois, todos estavam reunidos na sala do trono de Shevat, exceto por Fei, enquanto Citan explicava aos companheiros e à Rainha Zephyr o que sabia.
_ Eu sinto muito. Não quis dizer coisa alguma até que tivesse certeza. Eu estava numa missão secreta com ordens do Imperador Cain para monitorar Fei. Ele me ordenou que determinasse se Fei seria uma ameaça ao mundo ou não. ‘O Contato’... É assim que o Imperador chama Fei.

_ É essa a sua conclusão? – perguntara Cain, quando Citan se reunira a ele.
_ Sim, Majestade. É esta a resposta que eu mesmo escolhi.
_ Anonelbe... Você acha que pode fazê-lo?
_ Sim – Citan assentiu – Humanos têm o potencial. Gerenciadores não são mais necessários.
_ O Contato não é nosso inimigo?
_ Sim, como diz, Majestade, se Fei é...
_ ... Então, eu deixo a situação a seu encargo... Eu pago por meu crime ao fazê-lo...

_ ‘Anonelbe’... – Citan dissera mais tarde, na ponte de comando da Yggdrasil, a Sigurd e Jessie – O há muito tempo esperado homem de deus, que levará as pessoas nascidas neste mundo com ele para um novo horizonte. Tal é o destino do ‘Contato’. É assim que o Imperador chamava Fei... Ele não me disse por que chamava Fei assim, no entanto.
_ Então, afinal de contas, quem é ele? – perguntou Sigurd.
_ Ele é Fei – respondeu Citan, de olhos baixos – Mas ele também é aquele que destruiu Elru, causou ferimentos sérios a Kahr, afundou a Yggdrasil, matou os subordinados de Rico em Kislev...
E sacudiu a cabeça.
_ ... Preciso continuar? Ele é... Id.
_ O que foi que disse? Id?!
_ O que quer dizer com isso? – perguntou Jessie.
_ Ele... quero dizer, Fei... – Citan ajeitou os óculos – tem Desordem Dissociativa de Identidade, também conhecida mais comumente como múltipla personalidade.
_ D-dissócio... O quê?
_ Desordem Dissociativa de Identidade – Citan voltou-se para Jessie – Ou múltipla personalidade. É uma desordem mental onde uma pessoa tem múltiplas personalidades.
_ Isso não pode ser sério... – murmurou Sigurd.
_ Ah, mas é muito sério – Citan confirmou – Fei é a prova viva disso. Eu estive observando Fei, que tem uma personalidade destruidora em seu interior, chamada ‘Id’. No início ele estava estável... Sua dissociação não ocorria, em absoluto, enquanto ele viveu em Lahan por aqueles três anos. Mas então, depois que Lahan foi atacada, as coisas mudaram. Pouco a pouco, o número de incidências de sua dissociação e sua duração começaram a aumentar. E então, em Solaris, uma manifestação completa de Id ocorreu.
_ O que a provocou? – quis saber Sigurd – Ele estava ótimo quando estava em Lahan, certo?
_ ... Meu palpite é que... a aparição de Grahf afetou Fei de algum modo. Você provavelmente sabe que Fei trabalhou com Grahf como o assassino ‘Id’ antes de ser trazido para viver em Lahan. Foi nessa época que Elru, a terra natal de Dominia, foi completamente obliterada. Grahf estava intencionalmente provocando a manifestação de Id por dentro de... por falta de um termo melhor... Fei.
_ Pra que propósito? – perguntou Jessie.
_ Para destruir Deus – Citan tornou a ajeitar os óculos – É isso o que Grahf estava dizendo... Isso é tudo o que sei. Embora possa haver mais a respeito... mas uma coisa é certa: Grahf estava encorajando a manifestação de Id, mas não tinha controle adequado sobre ele.
_ Em outras palavras – Sigurd atalhou – era demais para ele manejar?
_ Exato.
_ Você disse ‘É tudo o que sabe, embora possa haver mais a respeito’... – Jessie observou – O que quis dizer com isso?
_ Explicarei isso agora. Na verdade, este é o ponto mais importante...
E Citan falou de sua entrevista com Fei, contido em Solaris. Ele também provocara aquela situação esperando pelo que conseguiria descobrir numa situação única, já que dificilmente Id daria ouvidos a quem quer que fosse de qualquer outra maneira.
_ ... Não há nada que possa fazer – ele disse ao Fei contido nas braçadeiras, e não ficou de todo surpreso ao ver a figura de Id se manifestar de repente, embora parecesse que ele e Fei mantinham-se oscilando, nem um nem outro à tona completamente. Mas era Id quem estava na superfície, pois ele respondeu:
_ Você entende bem. Bem como eu esperava, Citan... Ou era ‘Doc’?
_ Eu estive esperando para conhecê-lo, Id. Eu queria falar com você. Acho que é tudo graças a esta máquina, que corta as conexões nervosas. Seja como for, o que é que Fei está fazendo no momento?
_ Fei? De qual Fei está falando?
_ Existe mais de um?
Id não respondeu, desviando o olhar.
_ Id?
_ ... Aquele que você chama de Fei está adormecido.
_ Dormindo?
_ Quando eu estou acordado, ele dorme. É por isso que ele não tem lembrança do que eu faço.
_ Por que ele não sabe?
_ É óbvio – Id deu de ombros – Ele é meu subordinado. Ele não pode espiar as minhas memórias. Ele não devia, de fato, nem existir. Aquele homem criou a personalidade dele à força. Fei é um inquilino no quarto da covardia...
_ Aquele homem?
_ Nosso pai, Khan. Ele selou a minha personalidade nos recessos mais profundos da minha consciência. Por alguma razão inexplicável, foi então que o Fei atual nasceu.
_ Quando você disse ‘covardia’, o que quis dizer?
Id tornou a fazer silêncio. Aquilo parecia incomodá-lo, Citan percebeu, e mais ainda quando o outro desviou os olhos.
_ ... Pra quê perguntar dele? Acha que pode fazer alguma coisa?
_ É raro ser capaz de falar com um verdadeiro esquizofrênico – Citan ajeitou os óculos – Como estudioso, estou extremamente intrigado.
_ Com amigos como você, hein doutor? – Id riu – Gosto de você, Citan. Mas, ele é insignificante. Afinal, ele é só uma falha. Um covarde feito ele não merece ser a ‘existência de Fei’. Uma figura patética que sempre fugiu da realidade. Ele nunca fez uma coisa sequer contra mim quando eu o controlo. Um covarde que se recusou a viver. Ele devia ter sido apagado. Mas continua a existir! Por que ele não desaparece?
Citan viu Id se mover sob a contenção, como se quisesse se debater de frustração. As algemas continuavam funcionando, no entanto, e Id pareceu se acalmar ao lembrar que não podia se mover.
_ Droga... Faz a minha pele formigar simplesmente estar no mesmo corpo que ele.
_ Vamos mudar de assunto. Eu gostaria de saber como e por que suas personalidades foram divididas. Já que você é quem está no controle, eu presumiria que você conhece a história.
Id desviou os olhos uma terceira vez e Citan, como se não tivesse notado, prosseguiu:
_ Normalmente, personalidades não se dividem como fizeram no seu caso. A não ser que houvesse algum tipo de trauma passado.
_ Quer que eu te fale das minhas memórias? – Id olhou para Citan novamente, e seu olhar escureceu apesar do riso em seu rosto – Não entenda mal. Eu não te dei o direito de me questionar. Só porque estou contido por essa máquina, não force sua sorte. Se eu realmente quisesse, poderia quebrar as barreiras e te esmagar. Não esqueça disso.
_ Então por que não faz isso? – as lentes dos óculos cintilaram, enquanto Citan confrontou Id sem parecer incomodado. E Id não respondeu.
_ Quer que eu diga por quê? – Citan aprumou os óculos – Você não tem controle completo sobre Fei, tem? O seu controle sobre ele é incompleto. Quebrar essas restrições exigiria uma quantidade tremenda de energia mental. Tendo gasto sua energia, Fei voltaria novamente. Basicamente, você teria que deixar o palco. Obviamente, o dia em que seria capaz de retornar é indeterminado. Assim, você não vai fazê-lo. Estou enganado?
De olhos fechados, Id ficou em silêncio por um instante, e então sorriu.
_ Então, você me conhece até demais. Eu não tenho completo...
E silenciou de repente, como se alguém o tivesse interrompido. Citan procurou olhar para o rosto dele.
_ O que houve, Id?
_ Você me forçou a vir. Ele está acordando. Em circunstâncias normais, eu teria sido capaz de me aguentar. Mas não consigo. Isso é tudo culpa daquela mulher. A existência dela torna Fei resistente.
_ Está falando de Elly?
_ Aquela mulher... A mesma – Id novamente pareceu incomodado, sacudindo a cabeça – Todo mundo. Devo... eliminar...
_ Eu não entendo. Não entendo, Id.
_ Você não precisa entender – Id pareceu estabilizar-se novamente – Mas, quando a hora chegar, basta aceitar do jeito que vier. Realidade e morte...
A imagem de Fei parecia mais sólida agora, e a de Id era quase transparente. Ele ia desaparecer. Com um sorriso cruel no rosto, ele encarou Citan uma última vez.
_ Eu vou te pegar no final... Até mais.

_ A porção emocional da atual personalidade de Fei foi selada por seu pai através de algum método – Citan prosseguiu a explicação na sala do trono da Rainha Zephyr, e todos o ouviam – E agora, com a fundação limpa da personalidade de Id. Em termos de computador, é como construir uma personalidade simulada no topo da porção compatível do sistema operacional.
“É essa a razão de Fei não ter qualquer memória de seu passado. Aqueles dez anos ou mais de memórias estão sob a supervisão de Id. Enquanto Id não entregar as memórias de livre e espontânea vontade... não há como Fei saber, já que ele nem sequer existia antes da época em que Id foi selado. A personalidade presente de Fei é uma forma subdesenvolvida que foi construída com base nos três anos morando em Lahan, estudando e aprendendo as reações de outras pessoas. Assim, ele não sabe como lidar plenamente com situações súbitas ou de emoções fortes.”
_ Elly, você é a pessoa que passou mais tempo com Fei – ele voltou-se para Elly – Então, eu presumo que você possa entender melhor. Não houve vezes quando ele ficava psicologicamente instável? Por exemplo, ele podia estar deprimido e, de repente, ter surtos de fúria...?
_ ... Sim.
_ Então, a personalidade presente dele é apenas temporária? – perguntou Jessie.
_ Não é isso o que estou dizendo. O Fei presente é uma personalidade única. É apenas que, estruturalmente, sua personalidade foi construída sobre a de Id, assim colocando Fei numa hierarquia inferior. É por isso que, quando Id está ativo, Fei não tem qualquer lembrança a respeito.
_ Significa, então, que ele pode eventualmente ser sobrepujado pelo Id? – Jessie questionou.
_ Sim, se fossem apenas Id e Fei – Citan confirmou – Mas esse não parece ser o caso. Id apenas se manifesta quando a energia mental de Fei está num estado enfraquecido. É um mistério em si mesmo que a personalidade subordinada, de Fei tenha qualquer controle sobre a personalidade de nível superior, de Id. É óbvio que existe uma terceira personalidade. Id chama essa existência ‘o covarde’.
“Na minha observação, este ‘covarde’ deve ser a personalidade fundamental de Fei. Em outras palavras, a manifestação de Id não é controlada por Fei, e sim pela personalidade conhecida como o covarde.”
_ ... Então, isso quer dizer o quê? – tornou a perguntar Jessie, e Citan explicou:
_ Ao mesmo tempo em que Id se ressente contra este covarde, ele também obviamente o teme. De um certo ponto de vista, este ‘covarde’ é quem está auxiliando o Fei atual a manter-se no controle. Eu não sei a razão pela qual esta terceira personalidade, perdoem-me, a personalidade fundamental de Fei, não se mostra. Se ele despertar, se tornará um com Id. Em outras palavras, há a possibilidade de que a personalidade completa original possa ser restaurada.
_ Isso aí é certeza? – perguntou Jessie.
_ Provavelmente. Mas eu não sei como despertá-lo. Antes que eu tivesse a oportunidade, Id desapareceu e se manteve assim desde então. Basicamente, enquanto nada aconteça a Fei que ponha em risco sua existência, Fei pode ser ele mesmo. Mas, os arredores não permitem tal oportunidade. Seria melhor para ele viver num lugar que fosse pacífico...

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