sábado, 28 de maio de 2016

Capítulo Quarenta e Dois

Capítulo 42: Fugindo de Solaris



Fei logo descobriu que não ter mais a ajuda de Elly não era ruim apenas porque se acostumara à presença da moça e porque lhe parecia estranho fazer qualquer coisa que fosse sabendo que ela não estaria mais ao seu lado; ao ganhar as ruas de Solaris e ter que ler sua sinalização, e agir como Elly aconselhava para não despertar suspeitas, Fei sentiu-se terrivelmente confuso por um momento.
“Sempre soube que ia ser assim – ele sacudiu a cabeça, organizando as idéias – A Rainha Zephyr e até o Bart já tinham mencionado que ia ser difícil pra Elly lutar contra Solaris. Uma coisa era enfrentar Gears desconhecidos ou do ‘Ethos’, e outra bem diferente foi ter que ir contra a própria família. Não, isso deve ser o melhor pra ela”.
O conhecimento da verdade não bastava, no entanto. Era melhor se concentrar no que tinha diante de si, encontrar os amigos e libertá-los como pudesse... e esperar que Elly dessa vez o ouvisse, e abandonasse o exército.
O caminho lógico a se seguir era o inverso do que tinha feito para chegar até ali, e ele procurou se recordar do prédio por onde ele e Elly tinham passado por um sensor de DNA. Ainda estava pensando em como enganaria o aparelho desta vez quando uma voz rude o interrompeu:
_ Ei, você!! Não é aquele da cerimônia de dedicação...?
Fei praguejou em silêncio. Estivera agindo de forma natural e esperando se misturar com a multidão, mas não levara em conta que ao fazer aquela trilha ao contrário, estava se dirigindo para um local com vigilância maior e menos público com o qual se confundir. Antes que pudesse responder, o guarda apontou-lhe uma arma de cano duplo.
_ Você está preso! Agora, passe por aquela porta!!
Por coincidência, era a mesma passagem que pretendia tomar. Tanto melhor, então. Depois que deixasse a área vigiada, daria um jeito de dominar o outro. Estava mesmo com disposição para uma briga depois dos acontecimentos recentes, e não causou problemas até que estivesse do outro lado, entre o sensor de identificação e o guarda.
_ Não posso atravessar essa passagem... O que pensa que vai fazer comigo?
_ Como eu suspeitava. Você não sabe de nada...!
E, diante dos olhos desconfiados de Fei, o guarda removeu o capacete branco que até então ocultara suas feições, revelando um rosto sorridente por trás de óculos de lentes quádruplas.
_ Doc!! Citan, por que está aqui?
_ Eu vi a imagem de Bart na Avevisão durante a cerimônia.
_ Então você também viu, Doc?
_ Sim. Mas não vi você, ou Elly. Pouco depois, eu ouvi que havia um intruso no segundo andar da Área Arebato. Suspeitei que provavelmente fosse você, então esperei aqui. Depois daquilo, não ouvi coisa alguma sobre a captura de qualquer outro intruso.
_ Incrível – Fei sorriu – E como soube que eu viria pra cá?
_ Bem – Citan ajeitou os óculos sobre os olhos – a melhor rota possível para penetrar no Palácio é através da comporta de lixo. E, para retornar ao terceiro andar, alguém teria que passar por esta torre de observação. E, aproveitando o momento...
Citan cruzou os braços, a expressão entediada.
_ Você acha que poderia, se possível, ser um pouquinho mais sutil? Quando se infiltra em terreno inimigo, a coisa mais básica a se fazer é agir de forma imperceptível. Com toda a comoção que causou, você poderia até despertar os mortos.
_ Bom, na verdade – Fei baixou a cabeça, embaraçado – eu estava tentando ser sutil...
_ A propósito, o que aconteceu com Elly? Ela não estava com você?
Fei voltou-se, olhando para o sensor de identificação. Sem Elly ele não teria passado por ali anteriormente... mas não poderia mais contar com ela.
_ Elly... Ela voltou pra casa. Ela realmente não devia ter qualquer relação conosco, habitantes da terra. Ela já tem pais tão maravilhosos...
_ Entendo – Citan respondeu, compreendendo mais do que tinha acontecido do que Fei quisera dizer – Sim. Pode ter sido melhor para ela desta forma. Vamos, então, para a calha de lixo. Um instante, Fei...
Citan passou pelo sensor de identificação sem qualquer cerimônia e digitou algo num painel lateral, e Fei percebeu que a máquina fora desativada.
_ Depressa Fei, eu pude enganar o computador de controle, mas o sistema está sempre se refazendo; vai voltar a funcionar a qualquer momento!
Fei atravessou depressa o bloqueio, e então notou que embora a habilidade de Citan em embaralhar o sistema não fosse de todo algo estranho para ele, havia algo de errado ali.
_ Doc, espera um pouco. Como é que você consegue passar por aqui? De acordo com a Elly, apenas cidadãos da Primeira Classe e pessoal do exército conseguem passar...?
_ Hein? Ah, bem – Citan ajeitou os óculos, parecendo curiosamente atrapalhado – Isso foi... Ah, e-eles provavelmente... ainda não apagaram minha identificação dos dias em que eu estava no exército, e ela continua armazenada no banco de dados. Incrível, não, o quanto a monitoração de Solaris anda relapsa...? Hahaha...
E Citan tomou o rumo do labirinto que Fei antes percorrera com Elly, seguido pelo rapaz confuso logo depois.
Com a supervisão de Citan, Fei não teve qualquer dificuldade em percorrer o caminho contrário do labirinto, ou alcançar o nível dos cidadãos de Terceira Classe de Solaris, até encontrar a calha de despejo e descer por ela. Havia um painel de controle à direita do duto que lembrou a Fei do acesso ao Forte Jasper, quando Bart esquecera como abrir e Margie tomara a frente, e Citan foi até ele com o ar pensativo de sempre.
_ Provavelmente, poderemos entrar com o auxílio deste botão...
Fei ficou observando enquanto o doutor digitava códigos e símbolos desconhecidos se mostravam no painel. Diferente da maioria dos computadores nos quais Citan mexia, no entanto, aquele parecia estar dando uma boa luta, e o rapaz percebeu que algo ia mal pela expressão do amigo.
_ Nada bom... Precisamos de um cartão para ativar o Vac-Sys... Então, o que faremos...?
_ ‘O que faremos’? Você não tinha um plano??
_ Não, receio que não – Citan abanou a cabeça, sempre refletindo – Presumi que nós simplesmente pensaríamos em alguma coisa...
Com uma das mãos à cintura e outra diante dos olhos, Fei começou a se perguntar se a maneira de agir de Bart era contagiosa quando alguém chamou atrás deles.
_ Esperem!
Diante dos olhares surpresos de Fei e Citan, Elly Van Houten desceu pela mesma passagem que eles tinham tomado e deteve-se, ofegante, diante os dois.
_ Ora, Elly, é você!
_ Elly? O que está fazendo aqui?
_ Bom... – Elly respondeu, de olhos baixos – Depois daquilo, quando eu estava chorando, minha mãe veio até onde eu estava e disse... ‘vá com eles’...
O momento estava bem nítido nas lembranças de Elly. Estava sentada em sua cama, sem de fato aceitar a forma como a situação se resolvera, quando ouviu a porta abrir.
_ Elly...
Não se voltou. Continuava envergonhada pelo que tinha dito, e embora quisesse se desculpar com a mãe, não encontrava as palavras certas para isso. E aquele embaraço não estava ajudando em nada sua disposição já abalada.
_ Elly, eu acho que você deveria viver sua vida da forma que desejar. Se as pessoas a quem ama estão passando por dificuldades... você não pode abandoná-los.
_ Mãe...
Era algo que ela queria ouvir, mas o alívio vinha acompanhado de uma necessidade ainda maior de se desculpar. E ela continuou de costas para a mãe, colhendo as palavras com dificuldade.
_ Eu sinto muito... Me desculpe pelo que eu disse antes...
_ ... Eu sei – Medena acenou, de olhos baixos – Mas não há dúvidas de que você seja minha filha. Não importa o que aconteça... eu amo você.
Sem dizer palavra, Elly se voltou com um sorriso triste em seu rosto. Fei estava certo, ela não era uma estranha. Ou não seria tão difícil para Elly aceitar que, ao sair de sua casa novamente, provavelmente não tornaria a ver Medena. Não havia como, a seu ver. E ela abraçou a mãe, escondendo o rosto.
_ Mamãe...
_ Eu sei, querida – Medena sorriu, afagando os cabelos da filha – Agora... É melhor que se apresse.
_ Eu sei – Elly se afastou, enxugando os olhos – Tome conta de você, mamãe.
Sem outra palavra, Elly correu para fora do quarto, apenas para encontrar o pai diante dela na porta. Apesar de sério, no entanto, ele parecia saber exatamente o que ela pretendia fazer, e não a estava detendo.
_ Elly... Fique com isto.
Elly reconheceu o cartão de acesso de nível militar de Erich. Com aquele cartão, mesmo dentro do Palácio, não deveria haver passagem que fosse manter-se fechada para ela.
_ Pai...?
_ Ser humano é ser capaz de escolher seu próprio caminho na vida – Erich disse, de olhos baixos. Também sabia que aquilo provavelmente seria um adeus; como dissera antes a Fei, no entanto, não havia mais nada que pudesse fazer.
_ ... Pai.
Ouviram um som vir do lado de fora, e Erich voltou-se para o salão principal, suspirando.
_ Parece que a polícia militar chegou. Venha, você pode ir enquanto eu falo com eles.
Elly acompanhou o pai escada abaixo até que chegassem ao salão principal. E havia soldados em vestes negras especiais, liderados por um oficial comandante todo em vermelho, que se deteve diante de um surpreso Erich.
_ A Guarda Imperial...? Por que estão aqui ao invés da polícia militar...?
Sem responder, o comandante fez menção de passar por Erich e alcançar Elly, mas foi detido.
_ O que está fazendo? – Erich agarrou o braço do homem – O intruso partiu. Minha filha não tem nada a ver com isso!
_ Lamento, Senhor Erich – o comandante soltou o próprio braço – Deve entregar sua filha a nós. São ordens do Senhor Krelian.
_ O Senhor Krelian? O que ele quer com a minha filha... O quê? Não vai me dizer que... O plano de Gazel...?!
_ O senhor não necessita saber – o comandante voltou-se para seus homens – Levem-na!
_ Deixem minha filha em paz! – Erich, antes que qualquer um pudesse se mover, sacou a pistola e retirou a arma da cintura do comandante, colocando-o sob mira – Ou então...!
_ Pai?
_ O-o quê? – pela primeira vez, o comandante da Guarda Imperial parecia ter perdido a frieza imparcial – Senhor Erich! Por acaso perdeu o seu juízo?
_ Eu estou perfeitamente bem – Erich apontou sua pistola para os outros soldados, mantendo a do comandante contra o próprio – Deixem ela em paz!
_ As ordens do Senhor Krelian são as ordens do Imperador – um dos soldados argumentou – Percebe o que vai acontecer com a sua posição se desobedecer esta ordem? Vai ser rebaixado a cidadão de Terceira Classe!
_ Eu sei disso. Mas, mesmo que seja uma ordem do Senhor Krelian, eu não vou permitir que minha filha se torne um instrumento das pesquisas dos Gazel. Elly, vá! Eu cuido disso!
_ Mas...
_ Não se preocupe comigo. Vá ajudar Fei.

sábado, 21 de maio de 2016

Capítulo Quarenta e Um

Capítulo 41: Lobo Solitário


_ Entra, Fei. Esse é o meu quarto.
Fei olhou ao redor. Todo o ambiente parecia feito do mesmo metal prateado com o qual cada habitação de Solaris era produzida, e ainda assim, não havia como confundir sequer o quarto de Elly com qualquer das habitações que vira até então. Ele pensava que os cidadãos de Segunda Classe viviam de maneira luxuosa, mas não havia comparação possível entre os cômodos discretos que vira de passagem e aquele único aposento. E Elly parecia estar chegando de um longo dia de trabalho ao invés de um afastamento de semanas, esticando os braços e sacudindo os cabelos para aliviar a tensão.
_ Ahh, finalmente posso relaxar um pouco...!
_ Esse lugar... é enorme! – Fei balbuciou quase sem pensar – Deve ser maior que a casa inteira do chefe da vila!
_ Heh – ela aceitou o cumprimento com um sorriso – Nossa, estou suada depois da correria... Então, acho que vou tomar um banho.
_ Você tem um banheiro no quarto?
_ É muito normal – Elly deu de ombros, entrando com naturalidade em um cilindro transparente no centro do aposento, embora Fei tivesse para si mesmo que não havia nada de normal naquilo. E ele apenas entendeu que aquele cilindro devia ser o chuveiro quando Elly, após um longo instante de silêncio, perguntou:
_ Até quando vai ficar olhando?
Tremendamente encabulado, arregalando os olhos e ficando vermelho, Fei ficou de costas de pronto. Em pouco tempo, podia-se ouvir o som suave de um chuveiro ligado, enquanto o vidro translúcido ficava opaco com o vapor. Um pouco inquieto, sem coragem de se voltar, Fei perguntou:
_ Ei, Elly... Aquela era a sua mãe?
_ É ela, sim – veio a voz de Elly de dentro do cilindro.
_ Ah. Ela, com certeza, é uma senhora muito bonita.
_ ... É. É, sim.
Fei não deixou de notar a hesitação antes da resposta dela, e embora tivesse alguma dúvida quanto a continuar tocando no assunto, ele não pôde refrear sua curiosidade.
_ ... Mas, você não parece muito com ela. Você puxou mais ao seu pai?
O som do chuveiro parou, e fez-se silêncio por outro longo momento antes que Elly tornasse a falar, com a voz um pouco mais baixa.
_ Você não percebeu ainda?
_ ... Do quê está falando?
_ A cor da minha pele, meu cabelo e olhos – o som do chuveiro se fez ouvir de novo, mas agora, Fei estava mais concentrado na voz de Elly – são diferentes de solarianos normais.
_ Pra falar a verdade, eu não prestei muita atenção... É sério?
_ ... Há muito tempo atrás, quando eu era pequena, eu tive uma babá. Ela era tão gentil comigo...! Mas, ela era uma habitante da superfície. E Cidadãos de Primeira Classe raramente se associam com eles. Mas a babá vivia na nossa casa e tomava conta de mim. Ela perdeu a filha quando estava na área da Terceira Classe... Meu pai sentiu pena dela e a manteve sob sua proteção. Mas ele nunca falou a ninguém sobre ela...
_ Por quê?
_ Meu pai estava preocupado com a minha aparência... Ele tinha uma razão pra isso – o som do chuveiro parou novamente, e a voz de Elly foi ainda mais baixa, quase como se ela quisesse esconder o que diria até de si mesma – Ela... provavelmente era a minha verdadeira...
_ Elly...
_ É melhor eu não... – ela parecia envergonhada, notando que tinha falado demais – Eu... tenho certeza de que você não quer ouvir a respeito... Desculpe.
_ Está tudo bem...
Minutos depois, Elly saiu do cilindro de banho e os dois não tornaram a tocar no assunto. Ela já estava novamente com seu uniforme, que parecia limpo também, e a moça alegremente empurrou Fei para dentro.
_ Agora é a sua vez!
_ Não, obrigado, eu não tenho tempo pra...
_ Anda, você precisa relaxar! Não se tem uma chance dessas com muita frequência.
_ Mas...!
_ Por favor...?
Ele não soube o que responder quando olhou para os olhos azuis dela, sem querer parecer rude e sem querer ceder ao mesmo tempo, e quando deu por si mesmo, Elly já o havia empurrado para dentro do cilindro e fechado a porta. Não havia mais o que discutir.
_ Tá, tudo bem... Se você insiste!
_ Devia ter me escutado desde o começo.
Ela se afastou e Fei, tremendamente sem jeito, começou a se despir. Mal terminara quando um jato de água morna caiu sobre ele, e ele deixou sua surpresa escapar na forma de um grito.
_ Você está bem. É só relaxar – veio a voz de Elly lá de fora, e ele teve que concordar. Passada a surpresa, a sensação da água morna era excelente, parecendo relaxar músculos que ele não percebera estarem exaustos até então, e parecia haver algo parecido com sabão na água, também. Não feria os olhos, fazia a água vir perfumada e também ajudava no relaxamento, e ele começou a esfregar o rosto.
_ Uau... Isso é ótimo! Não tem a menor comparação entre isso e a velha banheira do doc...!
Ele teve então uma sensação incômoda e voltou-se. Lá estava Elly, do lado do cilindro e aparentemente olhando para dentro, apesar do vidro embaçado pelo vapor.
_ E-ei, pára com isso! – ele ficou de costas, sentindo o rosto corar novamente – Pare de ficar me olhando!
_ Não se preocupe, eu não estou olhando – mas a voz dela, soando divertida, o deixou em dúvida – Só estou ajustando o chuveiro. Como está a temperatura?
_ Tá bem, tá tudo bem. Só saia daí, anda!
Dissesse ela o que dissesse, ele não ia ficar à vontade para tomar banho com uma moça olhando para ele. E ficou ainda mais sem jeito quando ouviu a voz dela, se afastando, dizer:
_ Aha, ha ha ha...  Parece que eu descobri que Fei também tem um ponto fraco.
O banho durou pouco; por agradável que fosse, ainda havia muito a ser feito e tendo recuperado suas roupas e saído do cilindro, Fei considerou a próxima ação.
_ E agora, o que fazer...? Não dá tempo pra relaxar.
_ É, eu não queria mesmo fazer isso – Elly parecera ter ficado ponderando enquanto Fei terminava seu banho, sentada sobre a cama – mas não temos qualquer escolha.
_ Tem alguma boa idéia, Elly?
_ O terminal de rede do quarto do meu pai – ela ficou de pé – Ele ficou zangado comigo uma vez por mexer lá. Há informação numerosa à qual apenas um punhado de pessoas tem acesso.
_ Então, podemos descobrir onde Bart e os outros estão usando isso?
_ Eu... espero que sim. Mas, pra usar o terminal, preciso entrar no quarto dos meus pais – e Elly pareceu entregue à reflexão, tentando planejar uma forma de acessar o computador do pai – Com a minha mãe por perto não vai ser fácil, e isso precisa ser antes do meu pai voltar do serviço. Se eu conseguir distraí-la um pouco, acho que você consegue acessar... Ah, mas vai estar tudo escrito em solariano, você não vai conseguir entender! E há os códigos, também...!
_ Hã, Elly, calma aí – Fei pediu, um pouco sem jeito, mas ela fez um gesto impaciente de silêncio e continuou, como se não o tivesse ouvido:
_ Então, você podia distraí-la enquanto eu acesso o banco de dados... Ah, mas a minha mãe não vai se distrair só com isso, ela vai querer ficar conversando comigo pra compensar o tempo que passei fora... Só se você falasse do que eu andei fazendo...! Mas, pra manter ela distraída o bastante, você ia ter que contar histórias muito boas, e vai ter que ser tudo falso, porque não dá pra falar do que andamos fazendo derrubando o ‘Ethos’, visitando Shevat e...
_ Elly! – Fei chamou, visivelmente incomodado. Era a primeira vez que a via daquele jeito, parecendo confusa mesmo enquanto falava consigo mesma. E então, batidas suaves na porta chamaram a atenção dos dois, e Medena entrou no quarto.
_ Mãe...! O que foi?
_ Estou interrompendo...? Ah, mas parece que já terminaram seu relatório, não foi?
_ Ah... É, terminamos sim.
_ Ah, Elly – Medena parecia muito emocionada – Estou tão feliz que esteja de volta... Deixa eu olhar pra você.
Fei sentiu-se um pouco embaraçado. Era a reação natural de uma mãe, ele presumia, ao ver uma filha que pensara ter morrido, e nada mais natural dadas as circunstâncias, mas uma vez que tinham estado planejando uma forma de enganá-la, ele não tinha como não se sentir culpado. E Medena continuou falando:
_ Seu pai disse que você voltaria, mas eu já tinha quase abandonado as esperanças.
_ ... Mãe...
_ Vai ficar em casa por algum tempo dessa vez? Você deveria ter algum tempo para relaxar antes de voltar ao serviço agora. Seu pai vai ficar tão feliz...!
_ S-sim, eu vou... Acho.
_ Sabe, acho que podíamos celebrar isso com um belo banquete! – Medena abriu um sorriso ainda mais satisfeito – Fei, gostaria de se juntar a nós? Elly nunca convida os amigos, estou muito feliz que esteja aqui. Fiquem à vontade enquanto eu vou às compras.
E ela saiu do quarto, deixando os dois a sós e em silêncio por um instante, antes que Elly ficasse de pé.
_ É agora ou nunca. Precisamos ir, Fei!
_ Hã? Ir aonde?
_ Podemos aproveitar enquanto minha mãe saiu pra usar o computador, anda! É a nossa melhor chance! Quero terminar isso antes do meu pai chegar.
Certificando-se de que Medena já tinha saído, os dois foram até os aposentos dos pais de Elly, onde ao fundo uma escrivaninha com terminal de computador acoplado eram claramente visíveis, e movida pela urgência, a moça digitou algo no teclado e o trouxe à vida.
_ É isso! Se pudermos atravessar o serviço de segurança da rede do palácio acessando esse terminal – o rosto de Elly pareceu tenso com a concentração enquanto Fei olhava para ela e para a porta atrás deles, e ela novamente ponderava em voz alta – ID... A senha provavelmente seria algo relacionado comigo.
Elly digitou ‘E-L-H-A-Y-M’ no teclado e, após um segundo processando, a máquina respondeu:
_ ... Acesso negado. Entre a senha correta.
_ ... Assim não funciona – Elly franziu o cenho – Vamos tentar de trás pra frente...
Novamente Elly completou o espaço da senha, agora digitando ‘M-Y-A-H-L-E’. Mais um instante de pausa, e o terminal respondeu:
_ Bem vindo à Rede de Informações de Solaris. Você tem 19 mensagens não lidas.
_ Isso! Consegui! – Elly comemorou – Vejamos, estávamos aqui antes, então... Uau! Conecta com isso aqui!
Fei não deixou de admirar o quanto ela ficou empolgada com o sucesso, voltando-se para ele e dizendo:
_ Fei, devemos poder conseguir chegar ao lugar onde todos estão... e nosso acesso vai ter que ser uma calha de despejo de lixo do nível de cidadãos de Terceira Classe!
_ O que quer dizer, vamos ter que voltar para onde estávamos antes.
_ Agora sabemos onde estamos! Vamos, precisamos correr!
_ Elly, onde está indo?
Nenhum dos dois percebera o momento em que Medena entrara, e ela não estava sozinha. Um senhor de meia idade e aparência severa entrou com ela, vestindo uma das fardas da Gebler e cabelos loiros. O pai de Elly.
_ Pai...!
_ O que está fazendo, Elly...? Eu já havia dito a você para não vir aqui e tocar nessa máquina.
Elly não respondeu, pensando depressa enquanto o pai foi até a parede e tocou um comunicador interno, tudo sob o olhar aflito da esposa.
_ Erich, não...
_ Alô, é o guarda? – ele ergueu a mão para silenciar a esposa – Sou eu, Erich. Um ladrão entrou aqui. Isso. Venham imediatamente.
E sacou uma pistola, mantendo Fei sob mira sem dizer palavra, até que Elly se interpôs entre eles.
_ Pai...!! Fei não é um ladrão!!
_ Então, o que ele é? – Erich continuou sem olhar para a filha, mantendo Fei sob mira – Um homem estranho no meu quarto... e não é um ladrão?
_ Há uma razão para isso...!!
Erich olhou nos olhos da filha por um momento, mas tornou a voltar os olhos para Fei, que se manteve imóvel. Ele não parecia assustado, tampouco, estranhamente relaxado, enquanto todos os seus sentidos estavam em alerta. Seria mais simples para ele se Elly não estivesse diante de si, mesmo sabendo que não poderia atacar com plena força. Afinal, era o pai dela que o estava ameaçando. Mas não podia esperar pela guarda.
_ Por favor, não atire nele! – Elly implorou – Fei só quer salvar seus amigos aprisionados! Eles são meus amigos, também!
_ Não! – Erich firmou a pistola, parecendo notar de repente que Fei estava tranquilo demais em tal situação – Mesmo que ele seja seu amigo, eu não posso ignorar um habitante da superfície que tenta entrar escondido no palácio!
_ ... Ótimo – a atitude de Elly mudou, e ela avançou um passo na direção do pai – Então, eu também sou uma traidora. Vá em frente e atire em mim!
_ Não! Você vai ficar aqui! Agora saia do caminho, Elly!
_ Não!
Erich estava aborrecido, e isso era evidente em sua postura. No entanto, ele começava a trair algo maior em sua forma de agir, algo parecido com temor. Tenso, ele tornou a olhar nos olhos da filha.
_ Você sabe como os traidores são punidos, mesmo que sejam cidadãos de Primeira Classe! Vai estar a salvo se matarmos os intrusos que sabem sobre nós. Eu só estou preocupado com a sua segurança...
Elly deu as costas ao pai, falando para o chão para não ter que olhar nos olhos de Fei.
_ ... Você está mentindo... Você só odeia estar em qualquer situação que te ponha em risco. Não é por isso que você não queria que eu me alistasse em Jugend? Você... só não queria que todos vissem a sua filha! – e tornou a se voltar para o pai – Porque eu sou meio habitante da superfície...!
Aquilo era mais do que Medena poderia suportar assistir, ou Erich poderia suportar ouvir. A mãe de Elly saiu do aposento, e o pai bateu no rosto da filha, derrubando-a.
_ Eu não consigo acreditar que você ainda...? Como ousa dizer isso na frente da sua mãe...!
_ Por que...!
_ Parem com isso!! – Fei colocou-se entre Elly e Erich, ajudando a moça a ficar de pé e olhando para o outro – Eu não quero ver um pai e uma filha brigarem por minha causa. Não vou causar mais problemas a vocês. Eu vim de minha livre vontade. Sou um intruso. Se eu puder apenas sair daqui, vai ficar tudo bem.
_ Fei...?!
_ Elly – o olhar triste dele para ela a fez ficar quieta – você não devia dizer aquilo na frente da sua mãe. Eu não sei da verdade, mas ela é sua mãe, não uma estranha. Não é mesmo?
Elly baixou a cabeça sem dizer mais nada. E Fei se voltou para Erich.
_ Agora, saia do caminho. Eu tenho que me apressar pra salvar meus amigos. Mas, se pretende atirar em mim, eu vou dar uma boa briga antes de ser preso.
Erich continuou a olhar para os olhos do rapaz por um momento, a expressão indecifrável, e então se afastou, ficando de costas para eles.
_ ? Pai...?
_ O intruso escapou – ele respondeu, sem se voltar – Agora saia daqui. Vai levar algum tempo até que os guardas cheguem.
Ele se voltou então, e a hostilidade fria fora substituída por respeito, e também algo como cansaço.
_ Você pode ser um intruso, mas o fato é que protegeu minha filha. Se eu atirar em você, vou perdê-la.
_ Pai... Deixa eu ir com o Fei...!
_ Não. Eu não posso deixar você ir.
_ Mas...!
_ Está tudo bem.
Elly e Erich se voltaram. Fei estava se afastando, parando no lance de escadas diante da porta do quarto e voltando-se para os dois.
_ Isso é um problema de habitantes da superfície agora – disse, olhando então para Erich – Não vamos dar mais trabalho a vocês. Eu vou sozinho.
_ Fei!!
_ Elly, dessa vez, abandone o exército – e sorriu – Obrigado por tudo.
_ Fei...
Sem outra palavra, Fei voltou-se e partiu, ganhando as ruas novamente.

  

CAN FIND THE ANSWERS, AND THEN

sábado, 14 de maio de 2016

Capítulo Quarenta Ponto Dois

(...)

A moça sacudiu a cabeça levemente, como se acabasse de despertar, e voltou-se para ele como se acabasse de perceber sua presença ali.
_ Desculpe... Você disse alguma coisa?
_ Se eu ‘disse alguma coisa’? Elly, você está bem? Parece que foi drogada, sei lá... É como se a sua mente não estivesse aqui.
_ D-desculpe, eu... só estava pensando – e ela pareceu se esforçar para despertar – E... todo esse barulho da multidão...
Ela então voltou seus olhos para a projeção nos céus novamente e avançou alguns passos, sem parecer consciente da presença de Fei ou de quem quer que fosse novamente. E Fei percebeu que uma segunda figura surgira à esquerda do trono do Imperador, numa plataforma. Um homem de cabelos grisalhos e ar sereno, que tomou a palavra.
_ Filhos do Imperador, por favor abram seu coração.
_ Krelian!
_ Hã? – Fei voltou-se, vendo que Elly parecia plenamente desperta agora. E ela repetiu:
_ Aquele é Krelian. Ele é o verdadeiro líder de Solaris. Ele não aparece muito em público. E isso é tudo o que eu sei.
_ Ele é... o líder de Solaris? O que...?
Algo estava diferente... o cabelo, provavelmente. A expressão serena, também. Ao menos, nem sempre fora assim. Fei não sabia como, mas... não era a primeira vez que via aquele homem. Tinha certeza que não.
_ Por que eu sinto...? Algo parece familiar...

Dois anjos, cada um apenas com uma asa, pairavam diante de um mural magnífico, representando os céus. Havia candelabros antigos pendendo do teto, e o jovem acabara de rezar diante de um altar abaixo do mural. Ficou de pé, voltou-se e desceu a escadaria, afastando-se pelo tapete vermelho ao longo da nave central quando uma porta abriu-se à sua esquerda.
Ele sentiu alguma surpresa ao rever o velho amigo, o rosto pouca coisa mais moço do que o que acabara de ver, a mesma tiara sobre a fronte... Apenas seus cabelos estavam realmente diferentes, azuis ao invés de brancos. Não usava ainda as roupas douradas de Solaris, mas algo em tons de azul e branco que parecia ser do clero. E ele deteve-se a poucos passos, cumprimentando-o com um aceno gentil.
_ Já faz muito tempo, Lacan.
_ Krelian. Está de volta?
_ Cheguei ontem à noite – Krelian acenou afirmativamente, sereno – Vai voltar para casa para buscar tintas, certo? Sophia me contou. Permita que eu o acompanhe.
_ Não há problemas nisso? – Lacan perguntou. Sabia que o outro tinha suas próprias ocupações e... ele próprio não sabia se queria companhia naquele momento. Mas Krelian acenou afirmativamente outra vez.
_ Nenhum. Deixarei alguém a cargo da minha unidade. Por causa de Solaris, as coisas são muito mais perigosas hoje em dia. De qualquer modo – ele perguntou, braços cruzados e olhos fechados – não se sentiria mais seguro se estivesse comigo?
Embora ainda tivesse suas objeções, Lacan sorriu, um pouco sem jeito. Quem via Krelian sereno daquela maneira dificilmente o relacionaria com o Krelian no campo de batalha, um comandante capaz e um guerreiro feroz, fosse em Gears ou fora deles. Estaria muito bem acompanhado, então. Quisesse, ou não.
_ ... Obrigado.
E os dois homens deixaram a nave central da catedral, cujos vitrais no teto deixavam entrar um único feixe de luz do sol.
Estavam caminhando agora pela praça de Nisan, uma Nisan bem menos antiga do que a dos tempos modernos, embora as ruas e casas parecessem ser exatamente as mesmas. E ele deteve-se diante de uma escadaria, sem acreditar, e voltou-se para Krelian.
_ ... O que foi que disse? Como é o nome do professor com quem está estudando?
_ Melchior.
_ Mas, afinal – ele perguntou enquanto subiam pelas escadas – por que está estudando?
_ Sophia me disse que a melhor maneira de acalmar o coração é ler um livro – Krelian subiu, passando por Lacan – É uma boa oportunidade. E despertou o meu interesse em estudar.
Lacan sacudiu a cabeça, como se aquilo não fizesse muito sentido. Era verdade, Krelian mudara muito desde que o conhecera, mas ainda não conseguia pensar nele como um estudioso. E apesar dos modos serenos, a chama do interesse cintilava em seus olhos.
_ ... Agora, estou lendo três livros por dia.
_ Se puder mudar, então vai mudar.
O olhar de Krelian pareceu intrigado, e Lacan deteve-se quando estavam nas portas de Nisan e voltou-se para o amigo com ar sério.
_ ... A arte da guerra, isso é tudo no que você pensa.
_ Ei, isso é maldade – protestou o outro – Sabe, eu sou o melhor de todos os alunos dele.
_ Sei... – Lacan ainda tinha suas reservas, mas no final das contas, talvez estivesse exagerando. Era bom ver Krelian interessado em outras coisas, afinal – Isso é muito bom, parece que você encontrou algo no qual colocar seu coração.
_ O que quer dizer? – da forma como dissera, Krelian pensou, Lacan podia estar dizendo que ele próprio não tinha seu coração em nada – Você tem algo. Seus quadros são esplêndidos. Devia ser grato...

Memórias... A cidade certamente era Nisan... e de lá para outro lugar, um ambiente mais sombrio, um local de conhecimento. Havia um cilindro cheio de um líquido esverdeado que se mantinha borbulhando, e Krelian voltou-se para ele, parecendo empolgado.
_ Lacan, olhe para isso. Eu finalmente o completei. Isso vai salvar as vidas das pessoas.
Lacan acenou com a cabeça. O entusiasmo do amigo era palpável. E Krelian voltou-se para o homem idoso próximo a eles, diante de um painel.
_ Não é mesmo, Melchior? Com isso, até mesmo Sophia vai...

_ ... Fei? Fei! O que há com você?
_ Hã?

Fei sacudiu a cabeça, não se lembrando exatamente  onde estivera. Mas, algo das memórias permanecia.
_ Não, não é nada... Mas aquele sujeito, Krelian... Eu sinto como se... já o tivesse conhecido antes...
_ Entende o que eles estão falando? Quer que eu traduza?
_ Sim, por favor.
_ ... O Portão que controlamos foi removido pela vontade do Imperador – Elly traduziu – No entanto, há animais tolos aqui profanando nossa terra sagrada com seus pés. Essas feras destruíram o Portão e querem remover o Imperador do trono na confusão. Isso é uma questão grave, o trono do Imperador foi poluído. Não podemos descansar ainda. Aqueles imbecis foram apanhados e acorrentados como os cães que são!
E diante do trono de Cain, cinco plataformas holográficas surgiram flutuando, e as figuras de Billy, Rico, Bart, Emeralda e Chu-Chu apareceram para indignação do público na praça e a surpresa de Elly e Fei, que não soube se conter.
_ Não, Bart! Ughh!
_ ‘Não grite!’ – Elly o agarrou e tapou sua boca – E se eles descobrirem que você é um habitante da superfície?’
_ ‘Desculpe, não pude evitar. Eles foram pegos! Droga... Vamos! Nós temos que ajudá-los...’
_ ‘Espere! Ele ainda está falando... – os curiosos que tinham se voltado para eles tornaram a dar atenção para Krelian, e isso deu tranquilidade suficiente para que Elly continuasse a traduzir o discurso – Para reviver nossos progenitores, os Gazel de outrora, no dia depois de amanhã, estes habitantes da superfície serão eliminados no interior do Sistema Soylent.’
_ ‘Reviver Gazel? Sistema Soylent? O que é isso?’
_ ‘Gazel’ são pessoas de Solaris de raça pura – Elly voltou-se para ele – A palavra significa ‘cidadãos de Primeira Classe’. Mas, neste caso, provavelmente significa o ‘Ministério Gazel’. Há muito tempo, os membros do Ministério Gazel perderam seus corpos de carne a fim de proteger o povo de Solaris. Ouvi dizer que o Sistema Soylent é um sistema de apoio importante para Solaris, mas não sei muito mais. Seja como for, é provavelmente uma cobertura para alguma espécie de experiência.
_ Experiência?
E ficou claro pela atitude de Fei que ele pretendia avançar de alguma forma pela praça, agora que a evidência de que seus amigos estavam em perigo era clara. Elly tentou detê-lo, mas ele se soltou bruscamente.
_ Não me diga o que fazer! Eu vou! Esses sujeitos não vão me deter.
_ É por isso que eu disse pra esperar! – Elly enfatizou, já sem muita paciência – Não sabemos o quê está havendo por lá. Se nós simplesmente sairmos correndo sem direção, podemos muito bem cair na mesma armadilha! O palácio está em alerta, então temos que investigar... Não sabemos sequer onde eles foram feitos prisioneiros.
Fei não parecia nem um pouco convencido a esperar, mas Elly respirou fundo, tentando ser razoável.
_ Nós ainda temos dois dias. Tenho certeza de que há uma maneira de ajudá-los. Nós temos que descobrir qual é antes de qualquer coisa.
_ ... Como você sabe que temos dois dias inteiros? E se eles mudarem de idéia e então, amanhã... Quero dizer, é possível, não é?
_ Talvez – Elly baixou a cabeça – Mas, não há nada que possamos fazer, certo? Citan não estava lá, o que significa que ele provavelmente está assistindo a transmissão de algum lugar nesse exato momento. Primeiro temos que encontrá-lo. Ele conhece a estrutura do núcleo central da cidade melhor do que eu. Então, não vamos fazer nada descuidado, tá bom?
_Onde é que ele está? – Fei se voltou para ela, parecendo agitado de novo – Precisamos dele!
_ Como é que eu vou saber?
_ ... Não seja convencida – Fei deu as costas a ela novamente – Você também não pensou em nada!
_ Eu só estou dizendo que temos que ser cuidadosos!
_ Mas...!
_ O quê...!
Enquanto os dois discutiam, cada vez mais acaloradamente, uma pequena multidão começou a se formar ao redor. Havia gente discutindo em voz alta durante uma cerimônia de dedicação e, mais ainda, não estavam falando solariano.
_ O quê está havendo?
_ Ei, o que vocês estão...?
O burburinho de vozes desconhecidas chamou a atenção de Fei, e de repente ele percebeu que eram o centro das atenções.
_ Veja! Fomos descobertos!
Elly olhou ao redor e, após o primeiro instante de susto, bronqueou:
_ Isso porque você fica falando alto! Vem, por aqui!
Enquanto os dois se afastavam da praça apressadamente, um alerta de segurança soou por toda a parte:
_ Alerta... Falha de Segurança... Dois invasores localizados... Ativar drones de segurança...
Dois robôs flutuantes vermelhos alcançaram Fei e Elly numa passarela próxima ao centro da cidade e os detiveram exigindo com suas vozes mecânicas que toda a ação fosse interrompida. Fei lembrava-se do que um irmão amarelo daquelas máquinas tinha feito no momento em que ele chegara ao bloco da Terceira Classe e se colocou em guarda.
_ Elly, eles estão aqui! E agora?
_ Se esses Cubos de Segurança nos apanharem, estamos encrencados! Fei, por aqui!
E sem a menor cerimônia, Elly correu até a mureta de proteção e saltou para baixo. Fei mal tivera tempo de se surpreender quando os cubos se aproximaram.
_ Pare...! Desista de qualquer movimento!
_ ... É. Vou ter que pular!!
E saltou para juntar-se a Elly, esperando que ela soubesse o que estava fazendo. Para sua surpresa, havia uma entrada para uma trilha subterrânea de escoamento logo abaixo, onde sua parceira o estava esperando.
_ Fei, você está bem?
_ Sim... Foi só muito repentino. Mas, temos que ir andando! Aqueles robôs esquisitos vão vir atrás de nós!
Elly pareceu pensativa por um momento e Fei tocou seu braço, preocupado.
_ ...? Elly, o que foi?
_ ... Então, este é o lugar... Eu podia ser capaz de fazer alguma coisa. Bem, seja como for, vamos tentar fugir por aqui!!
O casal desapareceu no sistema de esgoto, enquanto os drones de segurança desceram levitando, analisando a situação.
_ ... suspeitos, fugindo!! Resposta de emergência! Requisitando apoio...!
Fei e Elly correram pelo escoamento d’água nos esgotos, e mesmo a iluminação melhor e as paredes de metal não bastavam para que o rapaz não reclamasse.
_ Esgoto! Mais organizado que o de Nortune, mas cheira tão mal quanto...
_ Guarde o fôlego para correr! – Elly bronqueou – Aqueles drones vão nos alcançar em breve se não nos apressarmos! Vem!
A trilha d’água era plana, mas as margens por vezes se elevavam, desciam e tornavam a subir, forçando o casal a subir por meio de escadas. Elly estava à metade de uma delas quando o som dos levitadores se fez ouvir, e Fei se voltou.
_ Elly, continue. Eu alcanço você num instante.
_ Fei...?
Elly voltou-se a tempo de ver Fei atingir um drone vermelho com seu Raijin, praticamente atravessando o drone ao descarregar a energia do seu punho direito.
Voltou-se novamente, o segundo drone flutuando no ar e passando por ele, manobrando para retornar. Portinholas estavam se abrindo nele, mas a lentidão de seu sistema de armas parecia perfeita para o rapaz.
_ Acabo com ele antes que ataque. Senretsu!
A sequência de chutes e socos, encerrada com um golpe mais forte de punhos unidos, deveria ter lançado o drone contra a parede aos pedaços; no entanto, não fizera mais do que empurrá-lo sensivelmente para trás antes que ele abrisse fogo, colhendo Fei em cheio numa salva de rajadas de concussão.
_ Anemo Bolt!
Dolorido, atordoado, Fei ergueu os olhos esperando ver o drone de segurança avançar sobre ele como fizera com o cidadão de Terceira Classe que vira antes, mas um relâmpago de ether o destruíra ao comando de Elly, e ela estendeu sua mão para ele.
_ Anda Fei, levanta! Depressa! A central já deve ter registrado a destruição desses dois, mais deles vão vir! Me dá a sua mão, anda!
_ C-cura... Interior...
A sensação de torpor em sua cabeça era forte, mas sua própria técnica de recuperação com o chi também era. A dor e as lesões dos disparos diminuíram, ele ficou de pé e saltou, agarrando a mão estendida de Elly e apoiando-se na parede para subir mais depressa, ofegando.
_ Obrigado... Mas como... você conseguiu...?
_ Os drones de segurança têm escudos poderosos, mas que só podem proteger contra um tipo de ataque por vez. Drones reforçados contra ataques físicos são mais fracos contra energia ether, e vice-versa. Mas venha! Deve haver uma saída pouco mais à frente.
Movido mais pela urgência do que qualquer outra coisa, Fei seguiu Elly sem questionar enquanto se recuperava da sensação causada pelos disparos concussivos. O casal seguiu em frente, Fei tendo a impressão de ouvir novamente o som dos levitadores dos drones se aproximando de algum ponto à retaguarda deles, até que Elly subiu por uma escada na parede que conduzia ao teto daquela sessão subterrânea e Fei a seguiu, fechando a passagem atrás de si e vendo-se diante dos muros de uma mansão magnífica que, diferente da maioria das moradas em Solaris, tinha até mesmo plantas verdadeiras no jardim. A maior diferença para Fei, no entanto, era que mesmo os muros eram feitos de metal, diferente das habitações da terra. Olhando ao redor, ele perguntou:
_ Onde nós estamos?
_ Nível de cidadãos de Primeira Classe – Elly respondeu – É aqui onde as pessoas de Solaris chamadas Gazel vivem. Me acompanhe.
E ela despreocupadamente passou pelos portões automáticos, parecendo muito à vontade. Mas Fei não estava tão tranquilo.
_ E-espera um pouco. O guarda robô pode acabar nos encontrando outra vez se você entrar aí.
_ Não se preocupe – ela sorriu – Esta é a minha casa.
_ S-sua casa...? Essa mansão enorme é sua??
Fei arregalou os olhos. A mansão, aparentemente toda construída naquele metal platinado ainda mais imponente do que todas as habitações de Solaris que ele vira até então, com um jardim circular em frente à entrada principal... era a casa dela?
_ Isso. Entre, vamos.
Ainda um pouco sem jeito em frente a tal habitação, Fei seguiu Elly para dentro do salão de visitas, onde uma senhora pareceu admirada ao ver a jovem oficial entrando.
_ Elly? Elly, é você?
_ Mãe!
Fei olhou de uma para a outra. Então, aquela era a mãe de Elly...? Alta, de cabelos loiros e olhos azuis, vestida no mesmo tipo de roupa que parecia comum em Solaris, ela desceu a escadaria e veio correndo abraçar a filha.
_ Você... Estou tão feliz... Você está bem... O exército me disse que você... tinha desaparecido em combate...
_ Não mãe, não é verdade. Veja, eu estou viva! Mãe – olhou ao redor, parecendo sentir falta de alguém – Cadê o pai?
_ Ainda está no palácio. Acho que ele vai voltar em breve.
_ Entendo...
Foi então que a mãe de Elly pareceu se dar conta da presença de Fei, quieto e parecendo sem jeito por estar ali.
_ Elly, quem é esse rapaz?
_ O quê...? Ah! Ele, er, é das Forças Especiais, o mesmo que eu. Ele acabou de... ser promovido, de cidadão de Terceira Classe. Foi graças a ele que eu consegui voltar. Certo Fei?
_ O quê? – Fei olhou para Elly e para a mãe dela – Hã, não... Digo...
_ Entendo – a mãe de Elly sorriu – Deve ser por isso que ele está vestido como um habitante da superfície. Meu nome é Medena, e sou a mãe de Elhaym. Muito obrigada por tê-la trazido de volta para nós. Mas, por que ele não está usando um uniforme das Forças Especiais igual a você, Elly?
Isso estava ficando complicado, pensou Fei, e aparentemente Elly chegou à mesma conclusão, porque se apressou a empurrá-lo e disse:
_ Ah, mãe, eu... Desculpa, mas tem um relatório que eu preciso mandar imediatamente, então... Fei, vem comigo.
E Elly arrastou Fei para cima, enquanto ele não sabia o que dizer ou se devia dizer alguma coisa. Diante do olhar confuso da dona da casa, só o que ocorreu a ele foi elogiar:
_ Hã... Sua casa é muito bonita...



BUT JUST YOU AND I

sábado, 7 de maio de 2016

Capítulo Quarenta Ponto Um

(...)

Preso no tubo, parecendo desconcertado enquanto tudo parecia voltar a uma posição normal, Fei olhou ao redor e sentiu que finalmente parara.
_ E agora, onde é que eu estou...?
Saiu do tubo metálico, e viu-se numa plataforma flutuante que seguiu com ele até uma imensa área metálica, semelhante a uma rua. Descendo e olhando ao redor, Fei percebeu estar diante de painéis sextavados divididos em inúmeros triângulos, de forma muito semelhante a uma colméia. E mal descera, ouviu alguém gritar:
_ N-nããããããoooooo! Não aguento mais!!
Voltou-se. Uma pessoa estava de pé numa das estruturas sextavadas da parede, um pequeno robô amarelo flutuando diante dele enquanto esbravejava:
_ Alguma coisa está errada com todos vocês! Trabalhando feito máquinas, dia após dia... Vocês não têm vontade! Isso não é viver!! Isso é... É...! Pare! Solta!
O robô flutuante estava carregando o cidadão pelo ar, enquanto ele parecia se decidir se devia ou não continuar se debatendo. E a máquina passou sobre Fei e para além da rua, detendo-se sobre o imenso vazio entre as plataformas sextavadas que formavam o piso, deixando então o protestante cair e desaparecer.
_ Os destinos de todos nós estão unidos num só – um pedestre ao lado de Fei murmurou, meio que para si mesmo – São os descontentes como ele que fazem com que todos sejamos punidos. Me mata pensar que todo o nosso trabalho pra melhorar o nível do nosso bloco esteja arruinado.
_ O que disse? – Fei voltou-se para o cidadão – ‘Posição’...?
_ É, eu quero subir um nível e me tornar cidadão de Segunda Classe – um segundo pedestre comentou – Então, finalmente eu vou poder viver com a Segunda Classe.
_ Um bocado de pessoas tem tentado alterar as identificações e escapar, ultimamente – outro pedestre comentou, quase parecendo assustado – Geralmente eles são pegos e ‘rearranjados’, ou re-educados. Nem sequer pense em tentar escapar.
E um dos painéis sextavados de repente se moveu, desaparecendo em pouco tempo dentro da parede. O primeiro pedestre sacudiu a cabeça em negativa, reprovando.
_ E eles trabalharam tanto...! Se ele não tivesse criticado o sistema, nada disso teria acontecido. Agora os dois vão ser re-educados.
Fei sacudiu a cabeça, entre revoltado e horrorizado. Apesar da evidente modernidade que emanava do lugar, aquilo era só outro bloco de prisioneiros, idêntico a Nortune. Talvez pior; ao menos, não havia execuções públicas para controle da população nas ruas de Kislev.
_ Não devia ter morrido em vão – outra voz disse, e Fei se voltou assustado, porque parecia tremendamente familiar. Mas, não podia ser...?
_ T-Timothy?
_ Não, o nome é Samson – o homem que lembrava seu amigo morto em Lahan respondeu – Mas, ei, eu te conheço! Do Torneio em Aveh...! Infelizmente, eu perdi na primeira rodada. Desmaiei no caminho de casa...
_ E...?
_ Quando dei por mim, já estava aqui. Todos os outros foram o que chamam de ‘rearranjados’. É uma mistura entre lavagem cerebral e amnésia. Mas fizeram alguma bobagem na minha vez, acho, porque ainda consigo me lembrar.
_ Então... O que houve com aquela pessoa de agora há pouco...?
_ É, ele também – Samson baixou a cabeça – Morreu em vão... Um dos meus poucos amigos, também. Eu não vou sair daquele jeito. Sabe aquela torre de guarda ali, perto de nós? Eu vou passar por ela até o bloco de Segunda Classe, então vou invadir o porto naval e dar tchauzinho pra sempre pra Solaris.
_ É possível se fazer isso?
_ É sim, porque eu consegui um passe – Samson mostrou o cartão – Me colocaram pra trabalhar no porto naval. Só tenho permissão de sair no meu turno, mas já ‘resolvi’ esse probleminha. E, que tal? Você pode vir junto! Com a sua força, estamos fora!
Na verdade, Fei não tinha planos de sair de Solaris ainda; mal chegara, e não cumprira sua missão. Mas, alcançando o porto no bloco da Segunda Classe, poderia ajudar o rapaz a escapar e ainda procuraria por Citan e Elly.
_ Tudo bem, eu concordo.
_ Isso aí, esse é o espírito! Mas – e falou baixo, procurando ao redor – é melhor tomar cuidado! Uma garota da Gebler acabou de passar por aqui por alguma razão.
_ Gebler?! – Fei olhou ao redor – E, ela por acaso tinha cabelo ruivo?
_ É, essa aí mesmo!! O quê – olhou desconfiado para Fei – vocês são amigos, por acaso? Falar nisso, ela estava mesmo procurando por alguém... Ela ainda deve estar por aí em algum lugar. Devia ir procurar.
Agradecendo e tomando o rumo indicado por Samson, Fei acabou descobrindo que as plataformas flutuantes serviam como elevadores particulares, cada uma conduzindo a um nicho diferente entre os painéis sextavados. E após de experimentar alguns deles, encontrou-se com Elly no compartimento 10-1-1.
_ Elly!
_ Fei! Ah, Fei, você é tão descuidado! Se está tentando se infiltrar na base, você tem que ser sutil!
_ Desculpe... Bem, onde nós estamos?
_ Estamos no ‘Bloco F da Terceira Classe’ de Solaris – Elly explicou, mostrando uma tela holográfica de computador – Existem por volta de vinte blocos de cada, com habitantes da terra morando neles. Nós Solarianos estamos a par de toda a informação pessoal... A estrutura de DNA de todos é registrada a nível molecular. E mesmo a classe deles... Sabe do quê esses cidadãos são chamados?
_ Não...
_ ‘Abelhas Operárias’ – Elly voltou-se para Fei – Por causa da forma dos blocos de habitação deles. Essas pessoas fornecem o trabalho manual vital para o centro de apoio de Solaris. Fiz uma viagem de campo para cá uma vez, há muito tempo. Eu lembro de pensar que as vidas deles não tinham nada a ver comigo. Nunca pensei que eu terminaria aqui, desse jeito...
_ Então, isso quer dizer que você deve saber para onde ir daqui, Elly.
_ Vagamente – ela acenou com a cabeça – Precisamos escapar primeiro.
_ Ah, e por falar nisso, onde foi parar o Doc?
_ Ele entrou num casulo diferente pra procurar você. Deve ter ido parar em um bloco diferente.
_ Droga... Estamos todos separados.
E por culpa sua, ele se recriminou. Depois de criticar tanto a impulsividade de Bart, agira igualzinho ao amigo. E aquele não era um lugar para que cometessem enganos. Mas Elly não parecia muito abalada.
_ Eu não me preocuparia com Citan. Ele conhece esta cidade melhor do que eu.
_ Me pergunto se Bart e os outros conseguiram?
_ Jessie está com eles, então acho que devem estar bem. Seja como for, vamos andando. Precisamos encontrar uma forma de sair desse bloco.
_ Eu acho que já encontrei, na verdade.
E Fei contou a ela sobre seu encontro com Samson e o que o outro dissera, conseguindo um olhar de aprovação de Elly.
_ Muito bom, Fei! Sim, deve ser mais simples nos movermos a partir da Segunda Classe. E onde encontramos essa pessoa?
_ Ele disse que estaria esperando próximo à torre de vigilância. Vamos.
Os dois dirigiram-se à torre de vigilância e, passada a surpresa de Samson ao ver a ‘garota da Gebler’ com o campeão do Torneio de Aveh, ele os conduziu para dentro. Uma vez fechada a porta, ele disse:
_ Daqui por diante, é melhor se nos dividirmos. É um labirinto, então tenham cuidado.
_ Certo, você também.
Samson deu-lhes polegar erguido e avançou primeiro. Depois de darem uma curta dianteira a ele, Elly e Fei seguiram.
A descrição de Samson não poderia ter sido melhor. Um labirinto, de fato, e Elly alertou Fei para os sistemas de segurança. Drones vasculhavam cada corredor, e eles apenas podiam avançar quando a passagem ficava livre. Depois de alguns minutos tensos esquivando-se pelos corredores e junções, chegaram ao ponto de checagem adiante do labirinto, reunindo-se a Samson, que sorriu.
_ Nada mal. Acho que vou eu mesmo à frente, daqui.
_ Espere! Você não é um Gazel! – Elly alertou – O que vai fazer?
_ Sem problema. Eu usei tecnologia marginal pra reescrever minha ID. Fique só olhando.
Elly estava temerosa do que podia acontecer, Fei percebeu sem entender, enquanto Samson subia no que parecia apenas uma esteira de bagagens com lâmpadas fluorescentes no piso. Os scanners fizeram a leitura e a voz do computador seguiu:
_ ... Leitura de ID... Incorreta. Eliminar.
Não houve tempo para que fizessem coisa alguma, nem mesmo para Samson recuar. Feixes de laser o desintegraram onde estava e, passado o choque do primeiro momento, Fei ergueu os punhos.
_ Maldita máquina... Eu vou acabar com você!
_ Não! Vai ser inútil fazer isso – Elly o deteve – Você não vai conseguir atravessar sem ter ou uma ID de Cidadão de Primeira Classe ou uma ID militar.
_ Então, o que vamos fazer?
_ Bom, não podemos simplesmente ficar parados aqui... Acho que vai ter que ser tudo ou nada.
_ Se não funcionar... nos preocupamos com isso mais tarde. É o que você está dizendo? – ele deu um sorriso fraco – Isso parece algo que o Bart diria.
_ Ai, que grosseiro – Elly pareceu emburrada – Não é como se eu sempre fizesse as coisas sem um plano. Acho que precisamos passar os dois juntos, ao mesmo tempo. Isso deve enganar os sensores.
_ Espera um pouco, como assim ‘os dois juntos’? Dá pra fazer isso?
_ S-sim, eu acho – Elly parecia um tanto sem jeito – Se nós... passarmos ao mesmo tempo, bem próximos um do outro, os sensores provavelmente só vão detectar a mim.
Fei olhou significativamente para a máquina. Se acabassem desintegrados... Bem, ao menos parecia ser rápido. Tornou a olhar para Elly.
_ Acha mesmo que vai funcionar? Que vai reconhecer você?
_ S-sim, eu acho...
_ Tá. É o bastante pra mim.
E sem palavra, Fei tomou Elly nos braços e os dois subiram nos sensores, ela olhando espantada e com as faces vermelhas enquanto ele próprio olhou para a máquina, parecendo preocupado. Passado um instante de silêncio, a mensagem da voz metálica se fez ouvir:
_ ... Cidadão de Primeira Classe, Gazel, confirmada. Por favor, prossiga de modo ordenado.
_ Isso! – Fei exultou – Nós podemos passar!
Foi quando ele percebeu o rosto de Elly, a expressão ainda distante e olhando para longe dele, como se estivesse perdida em pensamentos.
_ Elly? O que foi?
_ ... Hã? Ah, bem... É que, depois de tudo o que eu fiz, estou surpresa que ainda não tenham me rotulado como traidora.
_ ... Você acha que eles ainda não relataram isso? Para a Gebler, isso seria como admitir uma falha; não acho que quisessem isso.
_ ... Espero que sim.
_ Certo! Então, vamos andando!
Seguiram adiante, subindo pelo elevador da torre de guarda e saindo enfim num salão circular, onde um guarda na porta os deteve.
_ Ei! Por que estão saindo por aí? Venham pra cá!
Antes sequer que Fei pudesse se preocupar, Elly tomou a frente e retrucou, com atitude:
_ ‘Eu sou uma tenente das Forças Imperiais Especiais, Elhaym Van Houten. Acabei de completar a coleta da leva especial do nível de Terceira Classe. Estou agora no processo de levar este habitante da superfície ao Q.G. Algum problema com isso?’
Fei não compreendera a conversa em solariano, mas era evidente pela atitude do guarda e a de Elly que ela usara sua autoridade de oficial da Gebler para que passassem. Era fácil imaginar que, mesmo em Solaris, não deviam haver muitos dispostos a criar problemas com a Gebler. As outras pessoas ao redor tinham um ar de superioridade do qual Fei não gostou, e achou que talvez fosse melhor não entender o que estavam dizendo. Imaginou se eles já saberiam que seus Portões tinham sido destruídos, e não eram mais tão inatingíveis quanto de costume.
Saíram no que parecia uma praça central repleta de acessos e escadarias para pisos superiores e inferiores. Não parecia ser algo novo para Elly, mas Fei estava muito admirado com tudo. Até onde sua visão podia alcançar, o piso era metálico, repleto de luzes e com mostradores holográficos de notícias. As pessoas tinham um ar saudável e roupas de qualidade e sobriedade, mas por uma estranha razão, ele sentia que havia algo de errado. A vida parecia perfeita para os habitantes de Solaris; perfeita até demais.
_ Artificial – ele murmurou, fazendo com que Elly se voltasse – O padrão de vida daqui... Tudo parece tão correto, tão ordenado... Não parece um lugar onde pessoas de verdade vivam.
E então Fei pareceu dar-se conta de Elly, olhando para ele com aquele ar de estranheza, e desculpou-se:
_ Ah... Perdão, Elly. E-eu... acho que estava pensando em voz alta.
_ ... Está tudo bem. Eu sei o que quer dizer – e ela acenou em afirmação enquanto ele parecia surpreso – Nasci e me criei em Solaris, então isso deveria ser muito natural pra mim, e a vida na terra lá embaixo deveria ser estranha... mas, por alguma razão que não sei explicar, o que senti ao ver a vida na superfície foi alívio. Era como se, finalmente... eu estivesse vendo a vida real de pessoas reais. Por isso me pareceu tão estranho ouvir você dizer isso; acho que nunca parei para pensar em como outras pessoas viam Solaris.
_ Elly...
E então perceberam uma comoção próxima; ao lado de um elevador entre os pisos, um guarda em trajes negros estava barrando o avanço de outros cidadãos.
_ Sinto muito, mas sem acesso especial, ninguém pode seguir. Estes são lugares especiais para a cerimônia de dedicação.
_ ‘Cerimônia de dedicação’ – Elly murmurou ao lado de Fei – Solaris provavelmente não está indo tão bem agora.
_ Hã? – Fei olhou ao redor sem entender – Por que temos que assistir isso? Decidimos que íamos encontrar com todos os outros. Não temos tempo pra ir a esse festival.
_ Não é um festival comum. As pessoas estão perturbadas com a destruição do Portão. A dedicação provavelmente é para acalmar as massas. Precisamos checar a postura de Solaris quanto a habitantes da terra. Temos que assistir à cerimônia, Fei.
Havia muita movimentação ao redor da praça central. Não foi difícil para Fei notar que as pessoas, de fato, pareciam inquietas, como Elly dissera. Mal pareciam olhar ao redor enquanto naves imensas se posicionavam no céu claro sobre eles, um teto de cristal translúcido mostrando o topo da imensa estrutura que era Solaris com suas várias hastes estendendo-se em todas as direções. Num ponto mais alto sobre a praça havia um brasão, o símbolo de Solaris que Fei já vira em naves e uniformes da Gebler. De lá, numa imagem ampliada em várias vezes por holoprojetores, foi possível ver um trono erguer-se com uma figura de expressão mumificada em um longo manto vermelho. A presença do Imperador Cain deu início a um coro de saudação, ao qual o rapaz não se uniu. Sentira ao mesmo tempo admiração e um medo instintivo ao ver aquela figura de feições de esqueleto, cuja voz foi irradiada pela praça:
_ Meus amados filhos, vocês podem ficar em paz. O Ministério Gazel e eu planejamos a destruição do Portão há muito tempo atrás.
“As pessoas escolhidas por Deus... Nós, os Gazel, retornaremos ao paraíso de Deus. Para a deusa mãe adormecida. O tempo de nossa imortalidade chegou”.
“Nós abrimos a porta para ‘Mahanon’... O local onde Deus descansa, a fonte de sabedoria e poder. Os habitantes da superfície sem dúvida usarão esta oportunidade para dominar seu poder. No entanto, não há necessidade alguma de preocupação... Desde que Solaris tenha esse poder...”
E sua voz ficou mais alta e poderosa, cobrindo o coro de aclamação por um instante, e a praça inteira pareceu estremecer.
_ Vamos mostrar a essas feras estúpidas, os Cordeiros, nosso verdadeiro poder!
As naves no céu começaram a disparar fogos de artifício enquanto o azul cristalino pareceu escurecer, e Fei precisou de um instante a mais para perceber que aquilo devia ser um efeito artificial produzido no cristal do teto. Voltando-se, ele reparou nas expressões vidradas das pessoas à sua volta e, mais perturbador, de Elly também.
_ Elly...? Ei, Elly!