sábado, 14 de maio de 2016

Capítulo Quarenta Ponto Dois

(...)

A moça sacudiu a cabeça levemente, como se acabasse de despertar, e voltou-se para ele como se acabasse de perceber sua presença ali.
_ Desculpe... Você disse alguma coisa?
_ Se eu ‘disse alguma coisa’? Elly, você está bem? Parece que foi drogada, sei lá... É como se a sua mente não estivesse aqui.
_ D-desculpe, eu... só estava pensando – e ela pareceu se esforçar para despertar – E... todo esse barulho da multidão...
Ela então voltou seus olhos para a projeção nos céus novamente e avançou alguns passos, sem parecer consciente da presença de Fei ou de quem quer que fosse novamente. E Fei percebeu que uma segunda figura surgira à esquerda do trono do Imperador, numa plataforma. Um homem de cabelos grisalhos e ar sereno, que tomou a palavra.
_ Filhos do Imperador, por favor abram seu coração.
_ Krelian!
_ Hã? – Fei voltou-se, vendo que Elly parecia plenamente desperta agora. E ela repetiu:
_ Aquele é Krelian. Ele é o verdadeiro líder de Solaris. Ele não aparece muito em público. E isso é tudo o que eu sei.
_ Ele é... o líder de Solaris? O que...?
Algo estava diferente... o cabelo, provavelmente. A expressão serena, também. Ao menos, nem sempre fora assim. Fei não sabia como, mas... não era a primeira vez que via aquele homem. Tinha certeza que não.
_ Por que eu sinto...? Algo parece familiar...

Dois anjos, cada um apenas com uma asa, pairavam diante de um mural magnífico, representando os céus. Havia candelabros antigos pendendo do teto, e o jovem acabara de rezar diante de um altar abaixo do mural. Ficou de pé, voltou-se e desceu a escadaria, afastando-se pelo tapete vermelho ao longo da nave central quando uma porta abriu-se à sua esquerda.
Ele sentiu alguma surpresa ao rever o velho amigo, o rosto pouca coisa mais moço do que o que acabara de ver, a mesma tiara sobre a fronte... Apenas seus cabelos estavam realmente diferentes, azuis ao invés de brancos. Não usava ainda as roupas douradas de Solaris, mas algo em tons de azul e branco que parecia ser do clero. E ele deteve-se a poucos passos, cumprimentando-o com um aceno gentil.
_ Já faz muito tempo, Lacan.
_ Krelian. Está de volta?
_ Cheguei ontem à noite – Krelian acenou afirmativamente, sereno – Vai voltar para casa para buscar tintas, certo? Sophia me contou. Permita que eu o acompanhe.
_ Não há problemas nisso? – Lacan perguntou. Sabia que o outro tinha suas próprias ocupações e... ele próprio não sabia se queria companhia naquele momento. Mas Krelian acenou afirmativamente outra vez.
_ Nenhum. Deixarei alguém a cargo da minha unidade. Por causa de Solaris, as coisas são muito mais perigosas hoje em dia. De qualquer modo – ele perguntou, braços cruzados e olhos fechados – não se sentiria mais seguro se estivesse comigo?
Embora ainda tivesse suas objeções, Lacan sorriu, um pouco sem jeito. Quem via Krelian sereno daquela maneira dificilmente o relacionaria com o Krelian no campo de batalha, um comandante capaz e um guerreiro feroz, fosse em Gears ou fora deles. Estaria muito bem acompanhado, então. Quisesse, ou não.
_ ... Obrigado.
E os dois homens deixaram a nave central da catedral, cujos vitrais no teto deixavam entrar um único feixe de luz do sol.
Estavam caminhando agora pela praça de Nisan, uma Nisan bem menos antiga do que a dos tempos modernos, embora as ruas e casas parecessem ser exatamente as mesmas. E ele deteve-se diante de uma escadaria, sem acreditar, e voltou-se para Krelian.
_ ... O que foi que disse? Como é o nome do professor com quem está estudando?
_ Melchior.
_ Mas, afinal – ele perguntou enquanto subiam pelas escadas – por que está estudando?
_ Sophia me disse que a melhor maneira de acalmar o coração é ler um livro – Krelian subiu, passando por Lacan – É uma boa oportunidade. E despertou o meu interesse em estudar.
Lacan sacudiu a cabeça, como se aquilo não fizesse muito sentido. Era verdade, Krelian mudara muito desde que o conhecera, mas ainda não conseguia pensar nele como um estudioso. E apesar dos modos serenos, a chama do interesse cintilava em seus olhos.
_ ... Agora, estou lendo três livros por dia.
_ Se puder mudar, então vai mudar.
O olhar de Krelian pareceu intrigado, e Lacan deteve-se quando estavam nas portas de Nisan e voltou-se para o amigo com ar sério.
_ ... A arte da guerra, isso é tudo no que você pensa.
_ Ei, isso é maldade – protestou o outro – Sabe, eu sou o melhor de todos os alunos dele.
_ Sei... – Lacan ainda tinha suas reservas, mas no final das contas, talvez estivesse exagerando. Era bom ver Krelian interessado em outras coisas, afinal – Isso é muito bom, parece que você encontrou algo no qual colocar seu coração.
_ O que quer dizer? – da forma como dissera, Krelian pensou, Lacan podia estar dizendo que ele próprio não tinha seu coração em nada – Você tem algo. Seus quadros são esplêndidos. Devia ser grato...

Memórias... A cidade certamente era Nisan... e de lá para outro lugar, um ambiente mais sombrio, um local de conhecimento. Havia um cilindro cheio de um líquido esverdeado que se mantinha borbulhando, e Krelian voltou-se para ele, parecendo empolgado.
_ Lacan, olhe para isso. Eu finalmente o completei. Isso vai salvar as vidas das pessoas.
Lacan acenou com a cabeça. O entusiasmo do amigo era palpável. E Krelian voltou-se para o homem idoso próximo a eles, diante de um painel.
_ Não é mesmo, Melchior? Com isso, até mesmo Sophia vai...

_ ... Fei? Fei! O que há com você?
_ Hã?

Fei sacudiu a cabeça, não se lembrando exatamente  onde estivera. Mas, algo das memórias permanecia.
_ Não, não é nada... Mas aquele sujeito, Krelian... Eu sinto como se... já o tivesse conhecido antes...
_ Entende o que eles estão falando? Quer que eu traduza?
_ Sim, por favor.
_ ... O Portão que controlamos foi removido pela vontade do Imperador – Elly traduziu – No entanto, há animais tolos aqui profanando nossa terra sagrada com seus pés. Essas feras destruíram o Portão e querem remover o Imperador do trono na confusão. Isso é uma questão grave, o trono do Imperador foi poluído. Não podemos descansar ainda. Aqueles imbecis foram apanhados e acorrentados como os cães que são!
E diante do trono de Cain, cinco plataformas holográficas surgiram flutuando, e as figuras de Billy, Rico, Bart, Emeralda e Chu-Chu apareceram para indignação do público na praça e a surpresa de Elly e Fei, que não soube se conter.
_ Não, Bart! Ughh!
_ ‘Não grite!’ – Elly o agarrou e tapou sua boca – E se eles descobrirem que você é um habitante da superfície?’
_ ‘Desculpe, não pude evitar. Eles foram pegos! Droga... Vamos! Nós temos que ajudá-los...’
_ ‘Espere! Ele ainda está falando... – os curiosos que tinham se voltado para eles tornaram a dar atenção para Krelian, e isso deu tranquilidade suficiente para que Elly continuasse a traduzir o discurso – Para reviver nossos progenitores, os Gazel de outrora, no dia depois de amanhã, estes habitantes da superfície serão eliminados no interior do Sistema Soylent.’
_ ‘Reviver Gazel? Sistema Soylent? O que é isso?’
_ ‘Gazel’ são pessoas de Solaris de raça pura – Elly voltou-se para ele – A palavra significa ‘cidadãos de Primeira Classe’. Mas, neste caso, provavelmente significa o ‘Ministério Gazel’. Há muito tempo, os membros do Ministério Gazel perderam seus corpos de carne a fim de proteger o povo de Solaris. Ouvi dizer que o Sistema Soylent é um sistema de apoio importante para Solaris, mas não sei muito mais. Seja como for, é provavelmente uma cobertura para alguma espécie de experiência.
_ Experiência?
E ficou claro pela atitude de Fei que ele pretendia avançar de alguma forma pela praça, agora que a evidência de que seus amigos estavam em perigo era clara. Elly tentou detê-lo, mas ele se soltou bruscamente.
_ Não me diga o que fazer! Eu vou! Esses sujeitos não vão me deter.
_ É por isso que eu disse pra esperar! – Elly enfatizou, já sem muita paciência – Não sabemos o quê está havendo por lá. Se nós simplesmente sairmos correndo sem direção, podemos muito bem cair na mesma armadilha! O palácio está em alerta, então temos que investigar... Não sabemos sequer onde eles foram feitos prisioneiros.
Fei não parecia nem um pouco convencido a esperar, mas Elly respirou fundo, tentando ser razoável.
_ Nós ainda temos dois dias. Tenho certeza de que há uma maneira de ajudá-los. Nós temos que descobrir qual é antes de qualquer coisa.
_ ... Como você sabe que temos dois dias inteiros? E se eles mudarem de idéia e então, amanhã... Quero dizer, é possível, não é?
_ Talvez – Elly baixou a cabeça – Mas, não há nada que possamos fazer, certo? Citan não estava lá, o que significa que ele provavelmente está assistindo a transmissão de algum lugar nesse exato momento. Primeiro temos que encontrá-lo. Ele conhece a estrutura do núcleo central da cidade melhor do que eu. Então, não vamos fazer nada descuidado, tá bom?
_Onde é que ele está? – Fei se voltou para ela, parecendo agitado de novo – Precisamos dele!
_ Como é que eu vou saber?
_ ... Não seja convencida – Fei deu as costas a ela novamente – Você também não pensou em nada!
_ Eu só estou dizendo que temos que ser cuidadosos!
_ Mas...!
_ O quê...!
Enquanto os dois discutiam, cada vez mais acaloradamente, uma pequena multidão começou a se formar ao redor. Havia gente discutindo em voz alta durante uma cerimônia de dedicação e, mais ainda, não estavam falando solariano.
_ O quê está havendo?
_ Ei, o que vocês estão...?
O burburinho de vozes desconhecidas chamou a atenção de Fei, e de repente ele percebeu que eram o centro das atenções.
_ Veja! Fomos descobertos!
Elly olhou ao redor e, após o primeiro instante de susto, bronqueou:
_ Isso porque você fica falando alto! Vem, por aqui!
Enquanto os dois se afastavam da praça apressadamente, um alerta de segurança soou por toda a parte:
_ Alerta... Falha de Segurança... Dois invasores localizados... Ativar drones de segurança...
Dois robôs flutuantes vermelhos alcançaram Fei e Elly numa passarela próxima ao centro da cidade e os detiveram exigindo com suas vozes mecânicas que toda a ação fosse interrompida. Fei lembrava-se do que um irmão amarelo daquelas máquinas tinha feito no momento em que ele chegara ao bloco da Terceira Classe e se colocou em guarda.
_ Elly, eles estão aqui! E agora?
_ Se esses Cubos de Segurança nos apanharem, estamos encrencados! Fei, por aqui!
E sem a menor cerimônia, Elly correu até a mureta de proteção e saltou para baixo. Fei mal tivera tempo de se surpreender quando os cubos se aproximaram.
_ Pare...! Desista de qualquer movimento!
_ ... É. Vou ter que pular!!
E saltou para juntar-se a Elly, esperando que ela soubesse o que estava fazendo. Para sua surpresa, havia uma entrada para uma trilha subterrânea de escoamento logo abaixo, onde sua parceira o estava esperando.
_ Fei, você está bem?
_ Sim... Foi só muito repentino. Mas, temos que ir andando! Aqueles robôs esquisitos vão vir atrás de nós!
Elly pareceu pensativa por um momento e Fei tocou seu braço, preocupado.
_ ...? Elly, o que foi?
_ ... Então, este é o lugar... Eu podia ser capaz de fazer alguma coisa. Bem, seja como for, vamos tentar fugir por aqui!!
O casal desapareceu no sistema de esgoto, enquanto os drones de segurança desceram levitando, analisando a situação.
_ ... suspeitos, fugindo!! Resposta de emergência! Requisitando apoio...!
Fei e Elly correram pelo escoamento d’água nos esgotos, e mesmo a iluminação melhor e as paredes de metal não bastavam para que o rapaz não reclamasse.
_ Esgoto! Mais organizado que o de Nortune, mas cheira tão mal quanto...
_ Guarde o fôlego para correr! – Elly bronqueou – Aqueles drones vão nos alcançar em breve se não nos apressarmos! Vem!
A trilha d’água era plana, mas as margens por vezes se elevavam, desciam e tornavam a subir, forçando o casal a subir por meio de escadas. Elly estava à metade de uma delas quando o som dos levitadores se fez ouvir, e Fei se voltou.
_ Elly, continue. Eu alcanço você num instante.
_ Fei...?
Elly voltou-se a tempo de ver Fei atingir um drone vermelho com seu Raijin, praticamente atravessando o drone ao descarregar a energia do seu punho direito.
Voltou-se novamente, o segundo drone flutuando no ar e passando por ele, manobrando para retornar. Portinholas estavam se abrindo nele, mas a lentidão de seu sistema de armas parecia perfeita para o rapaz.
_ Acabo com ele antes que ataque. Senretsu!
A sequência de chutes e socos, encerrada com um golpe mais forte de punhos unidos, deveria ter lançado o drone contra a parede aos pedaços; no entanto, não fizera mais do que empurrá-lo sensivelmente para trás antes que ele abrisse fogo, colhendo Fei em cheio numa salva de rajadas de concussão.
_ Anemo Bolt!
Dolorido, atordoado, Fei ergueu os olhos esperando ver o drone de segurança avançar sobre ele como fizera com o cidadão de Terceira Classe que vira antes, mas um relâmpago de ether o destruíra ao comando de Elly, e ela estendeu sua mão para ele.
_ Anda Fei, levanta! Depressa! A central já deve ter registrado a destruição desses dois, mais deles vão vir! Me dá a sua mão, anda!
_ C-cura... Interior...
A sensação de torpor em sua cabeça era forte, mas sua própria técnica de recuperação com o chi também era. A dor e as lesões dos disparos diminuíram, ele ficou de pé e saltou, agarrando a mão estendida de Elly e apoiando-se na parede para subir mais depressa, ofegando.
_ Obrigado... Mas como... você conseguiu...?
_ Os drones de segurança têm escudos poderosos, mas que só podem proteger contra um tipo de ataque por vez. Drones reforçados contra ataques físicos são mais fracos contra energia ether, e vice-versa. Mas venha! Deve haver uma saída pouco mais à frente.
Movido mais pela urgência do que qualquer outra coisa, Fei seguiu Elly sem questionar enquanto se recuperava da sensação causada pelos disparos concussivos. O casal seguiu em frente, Fei tendo a impressão de ouvir novamente o som dos levitadores dos drones se aproximando de algum ponto à retaguarda deles, até que Elly subiu por uma escada na parede que conduzia ao teto daquela sessão subterrânea e Fei a seguiu, fechando a passagem atrás de si e vendo-se diante dos muros de uma mansão magnífica que, diferente da maioria das moradas em Solaris, tinha até mesmo plantas verdadeiras no jardim. A maior diferença para Fei, no entanto, era que mesmo os muros eram feitos de metal, diferente das habitações da terra. Olhando ao redor, ele perguntou:
_ Onde nós estamos?
_ Nível de cidadãos de Primeira Classe – Elly respondeu – É aqui onde as pessoas de Solaris chamadas Gazel vivem. Me acompanhe.
E ela despreocupadamente passou pelos portões automáticos, parecendo muito à vontade. Mas Fei não estava tão tranquilo.
_ E-espera um pouco. O guarda robô pode acabar nos encontrando outra vez se você entrar aí.
_ Não se preocupe – ela sorriu – Esta é a minha casa.
_ S-sua casa...? Essa mansão enorme é sua??
Fei arregalou os olhos. A mansão, aparentemente toda construída naquele metal platinado ainda mais imponente do que todas as habitações de Solaris que ele vira até então, com um jardim circular em frente à entrada principal... era a casa dela?
_ Isso. Entre, vamos.
Ainda um pouco sem jeito em frente a tal habitação, Fei seguiu Elly para dentro do salão de visitas, onde uma senhora pareceu admirada ao ver a jovem oficial entrando.
_ Elly? Elly, é você?
_ Mãe!
Fei olhou de uma para a outra. Então, aquela era a mãe de Elly...? Alta, de cabelos loiros e olhos azuis, vestida no mesmo tipo de roupa que parecia comum em Solaris, ela desceu a escadaria e veio correndo abraçar a filha.
_ Você... Estou tão feliz... Você está bem... O exército me disse que você... tinha desaparecido em combate...
_ Não mãe, não é verdade. Veja, eu estou viva! Mãe – olhou ao redor, parecendo sentir falta de alguém – Cadê o pai?
_ Ainda está no palácio. Acho que ele vai voltar em breve.
_ Entendo...
Foi então que a mãe de Elly pareceu se dar conta da presença de Fei, quieto e parecendo sem jeito por estar ali.
_ Elly, quem é esse rapaz?
_ O quê...? Ah! Ele, er, é das Forças Especiais, o mesmo que eu. Ele acabou de... ser promovido, de cidadão de Terceira Classe. Foi graças a ele que eu consegui voltar. Certo Fei?
_ O quê? – Fei olhou para Elly e para a mãe dela – Hã, não... Digo...
_ Entendo – a mãe de Elly sorriu – Deve ser por isso que ele está vestido como um habitante da superfície. Meu nome é Medena, e sou a mãe de Elhaym. Muito obrigada por tê-la trazido de volta para nós. Mas, por que ele não está usando um uniforme das Forças Especiais igual a você, Elly?
Isso estava ficando complicado, pensou Fei, e aparentemente Elly chegou à mesma conclusão, porque se apressou a empurrá-lo e disse:
_ Ah, mãe, eu... Desculpa, mas tem um relatório que eu preciso mandar imediatamente, então... Fei, vem comigo.
E Elly arrastou Fei para cima, enquanto ele não sabia o que dizer ou se devia dizer alguma coisa. Diante do olhar confuso da dona da casa, só o que ocorreu a ele foi elogiar:
_ Hã... Sua casa é muito bonita...



BUT JUST YOU AND I

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