sábado, 21 de maio de 2016

Capítulo Quarenta e Um

Capítulo 41: Lobo Solitário


_ Entra, Fei. Esse é o meu quarto.
Fei olhou ao redor. Todo o ambiente parecia feito do mesmo metal prateado com o qual cada habitação de Solaris era produzida, e ainda assim, não havia como confundir sequer o quarto de Elly com qualquer das habitações que vira até então. Ele pensava que os cidadãos de Segunda Classe viviam de maneira luxuosa, mas não havia comparação possível entre os cômodos discretos que vira de passagem e aquele único aposento. E Elly parecia estar chegando de um longo dia de trabalho ao invés de um afastamento de semanas, esticando os braços e sacudindo os cabelos para aliviar a tensão.
_ Ahh, finalmente posso relaxar um pouco...!
_ Esse lugar... é enorme! – Fei balbuciou quase sem pensar – Deve ser maior que a casa inteira do chefe da vila!
_ Heh – ela aceitou o cumprimento com um sorriso – Nossa, estou suada depois da correria... Então, acho que vou tomar um banho.
_ Você tem um banheiro no quarto?
_ É muito normal – Elly deu de ombros, entrando com naturalidade em um cilindro transparente no centro do aposento, embora Fei tivesse para si mesmo que não havia nada de normal naquilo. E ele apenas entendeu que aquele cilindro devia ser o chuveiro quando Elly, após um longo instante de silêncio, perguntou:
_ Até quando vai ficar olhando?
Tremendamente encabulado, arregalando os olhos e ficando vermelho, Fei ficou de costas de pronto. Em pouco tempo, podia-se ouvir o som suave de um chuveiro ligado, enquanto o vidro translúcido ficava opaco com o vapor. Um pouco inquieto, sem coragem de se voltar, Fei perguntou:
_ Ei, Elly... Aquela era a sua mãe?
_ É ela, sim – veio a voz de Elly de dentro do cilindro.
_ Ah. Ela, com certeza, é uma senhora muito bonita.
_ ... É. É, sim.
Fei não deixou de notar a hesitação antes da resposta dela, e embora tivesse alguma dúvida quanto a continuar tocando no assunto, ele não pôde refrear sua curiosidade.
_ ... Mas, você não parece muito com ela. Você puxou mais ao seu pai?
O som do chuveiro parou, e fez-se silêncio por outro longo momento antes que Elly tornasse a falar, com a voz um pouco mais baixa.
_ Você não percebeu ainda?
_ ... Do quê está falando?
_ A cor da minha pele, meu cabelo e olhos – o som do chuveiro se fez ouvir de novo, mas agora, Fei estava mais concentrado na voz de Elly – são diferentes de solarianos normais.
_ Pra falar a verdade, eu não prestei muita atenção... É sério?
_ ... Há muito tempo atrás, quando eu era pequena, eu tive uma babá. Ela era tão gentil comigo...! Mas, ela era uma habitante da superfície. E Cidadãos de Primeira Classe raramente se associam com eles. Mas a babá vivia na nossa casa e tomava conta de mim. Ela perdeu a filha quando estava na área da Terceira Classe... Meu pai sentiu pena dela e a manteve sob sua proteção. Mas ele nunca falou a ninguém sobre ela...
_ Por quê?
_ Meu pai estava preocupado com a minha aparência... Ele tinha uma razão pra isso – o som do chuveiro parou novamente, e a voz de Elly foi ainda mais baixa, quase como se ela quisesse esconder o que diria até de si mesma – Ela... provavelmente era a minha verdadeira...
_ Elly...
_ É melhor eu não... – ela parecia envergonhada, notando que tinha falado demais – Eu... tenho certeza de que você não quer ouvir a respeito... Desculpe.
_ Está tudo bem...
Minutos depois, Elly saiu do cilindro de banho e os dois não tornaram a tocar no assunto. Ela já estava novamente com seu uniforme, que parecia limpo também, e a moça alegremente empurrou Fei para dentro.
_ Agora é a sua vez!
_ Não, obrigado, eu não tenho tempo pra...
_ Anda, você precisa relaxar! Não se tem uma chance dessas com muita frequência.
_ Mas...!
_ Por favor...?
Ele não soube o que responder quando olhou para os olhos azuis dela, sem querer parecer rude e sem querer ceder ao mesmo tempo, e quando deu por si mesmo, Elly já o havia empurrado para dentro do cilindro e fechado a porta. Não havia mais o que discutir.
_ Tá, tudo bem... Se você insiste!
_ Devia ter me escutado desde o começo.
Ela se afastou e Fei, tremendamente sem jeito, começou a se despir. Mal terminara quando um jato de água morna caiu sobre ele, e ele deixou sua surpresa escapar na forma de um grito.
_ Você está bem. É só relaxar – veio a voz de Elly lá de fora, e ele teve que concordar. Passada a surpresa, a sensação da água morna era excelente, parecendo relaxar músculos que ele não percebera estarem exaustos até então, e parecia haver algo parecido com sabão na água, também. Não feria os olhos, fazia a água vir perfumada e também ajudava no relaxamento, e ele começou a esfregar o rosto.
_ Uau... Isso é ótimo! Não tem a menor comparação entre isso e a velha banheira do doc...!
Ele teve então uma sensação incômoda e voltou-se. Lá estava Elly, do lado do cilindro e aparentemente olhando para dentro, apesar do vidro embaçado pelo vapor.
_ E-ei, pára com isso! – ele ficou de costas, sentindo o rosto corar novamente – Pare de ficar me olhando!
_ Não se preocupe, eu não estou olhando – mas a voz dela, soando divertida, o deixou em dúvida – Só estou ajustando o chuveiro. Como está a temperatura?
_ Tá bem, tá tudo bem. Só saia daí, anda!
Dissesse ela o que dissesse, ele não ia ficar à vontade para tomar banho com uma moça olhando para ele. E ficou ainda mais sem jeito quando ouviu a voz dela, se afastando, dizer:
_ Aha, ha ha ha...  Parece que eu descobri que Fei também tem um ponto fraco.
O banho durou pouco; por agradável que fosse, ainda havia muito a ser feito e tendo recuperado suas roupas e saído do cilindro, Fei considerou a próxima ação.
_ E agora, o que fazer...? Não dá tempo pra relaxar.
_ É, eu não queria mesmo fazer isso – Elly parecera ter ficado ponderando enquanto Fei terminava seu banho, sentada sobre a cama – mas não temos qualquer escolha.
_ Tem alguma boa idéia, Elly?
_ O terminal de rede do quarto do meu pai – ela ficou de pé – Ele ficou zangado comigo uma vez por mexer lá. Há informação numerosa à qual apenas um punhado de pessoas tem acesso.
_ Então, podemos descobrir onde Bart e os outros estão usando isso?
_ Eu... espero que sim. Mas, pra usar o terminal, preciso entrar no quarto dos meus pais – e Elly pareceu entregue à reflexão, tentando planejar uma forma de acessar o computador do pai – Com a minha mãe por perto não vai ser fácil, e isso precisa ser antes do meu pai voltar do serviço. Se eu conseguir distraí-la um pouco, acho que você consegue acessar... Ah, mas vai estar tudo escrito em solariano, você não vai conseguir entender! E há os códigos, também...!
_ Hã, Elly, calma aí – Fei pediu, um pouco sem jeito, mas ela fez um gesto impaciente de silêncio e continuou, como se não o tivesse ouvido:
_ Então, você podia distraí-la enquanto eu acesso o banco de dados... Ah, mas a minha mãe não vai se distrair só com isso, ela vai querer ficar conversando comigo pra compensar o tempo que passei fora... Só se você falasse do que eu andei fazendo...! Mas, pra manter ela distraída o bastante, você ia ter que contar histórias muito boas, e vai ter que ser tudo falso, porque não dá pra falar do que andamos fazendo derrubando o ‘Ethos’, visitando Shevat e...
_ Elly! – Fei chamou, visivelmente incomodado. Era a primeira vez que a via daquele jeito, parecendo confusa mesmo enquanto falava consigo mesma. E então, batidas suaves na porta chamaram a atenção dos dois, e Medena entrou no quarto.
_ Mãe...! O que foi?
_ Estou interrompendo...? Ah, mas parece que já terminaram seu relatório, não foi?
_ Ah... É, terminamos sim.
_ Ah, Elly – Medena parecia muito emocionada – Estou tão feliz que esteja de volta... Deixa eu olhar pra você.
Fei sentiu-se um pouco embaraçado. Era a reação natural de uma mãe, ele presumia, ao ver uma filha que pensara ter morrido, e nada mais natural dadas as circunstâncias, mas uma vez que tinham estado planejando uma forma de enganá-la, ele não tinha como não se sentir culpado. E Medena continuou falando:
_ Seu pai disse que você voltaria, mas eu já tinha quase abandonado as esperanças.
_ ... Mãe...
_ Vai ficar em casa por algum tempo dessa vez? Você deveria ter algum tempo para relaxar antes de voltar ao serviço agora. Seu pai vai ficar tão feliz...!
_ S-sim, eu vou... Acho.
_ Sabe, acho que podíamos celebrar isso com um belo banquete! – Medena abriu um sorriso ainda mais satisfeito – Fei, gostaria de se juntar a nós? Elly nunca convida os amigos, estou muito feliz que esteja aqui. Fiquem à vontade enquanto eu vou às compras.
E ela saiu do quarto, deixando os dois a sós e em silêncio por um instante, antes que Elly ficasse de pé.
_ É agora ou nunca. Precisamos ir, Fei!
_ Hã? Ir aonde?
_ Podemos aproveitar enquanto minha mãe saiu pra usar o computador, anda! É a nossa melhor chance! Quero terminar isso antes do meu pai chegar.
Certificando-se de que Medena já tinha saído, os dois foram até os aposentos dos pais de Elly, onde ao fundo uma escrivaninha com terminal de computador acoplado eram claramente visíveis, e movida pela urgência, a moça digitou algo no teclado e o trouxe à vida.
_ É isso! Se pudermos atravessar o serviço de segurança da rede do palácio acessando esse terminal – o rosto de Elly pareceu tenso com a concentração enquanto Fei olhava para ela e para a porta atrás deles, e ela novamente ponderava em voz alta – ID... A senha provavelmente seria algo relacionado comigo.
Elly digitou ‘E-L-H-A-Y-M’ no teclado e, após um segundo processando, a máquina respondeu:
_ ... Acesso negado. Entre a senha correta.
_ ... Assim não funciona – Elly franziu o cenho – Vamos tentar de trás pra frente...
Novamente Elly completou o espaço da senha, agora digitando ‘M-Y-A-H-L-E’. Mais um instante de pausa, e o terminal respondeu:
_ Bem vindo à Rede de Informações de Solaris. Você tem 19 mensagens não lidas.
_ Isso! Consegui! – Elly comemorou – Vejamos, estávamos aqui antes, então... Uau! Conecta com isso aqui!
Fei não deixou de admirar o quanto ela ficou empolgada com o sucesso, voltando-se para ele e dizendo:
_ Fei, devemos poder conseguir chegar ao lugar onde todos estão... e nosso acesso vai ter que ser uma calha de despejo de lixo do nível de cidadãos de Terceira Classe!
_ O que quer dizer, vamos ter que voltar para onde estávamos antes.
_ Agora sabemos onde estamos! Vamos, precisamos correr!
_ Elly, onde está indo?
Nenhum dos dois percebera o momento em que Medena entrara, e ela não estava sozinha. Um senhor de meia idade e aparência severa entrou com ela, vestindo uma das fardas da Gebler e cabelos loiros. O pai de Elly.
_ Pai...!
_ O que está fazendo, Elly...? Eu já havia dito a você para não vir aqui e tocar nessa máquina.
Elly não respondeu, pensando depressa enquanto o pai foi até a parede e tocou um comunicador interno, tudo sob o olhar aflito da esposa.
_ Erich, não...
_ Alô, é o guarda? – ele ergueu a mão para silenciar a esposa – Sou eu, Erich. Um ladrão entrou aqui. Isso. Venham imediatamente.
E sacou uma pistola, mantendo Fei sob mira sem dizer palavra, até que Elly se interpôs entre eles.
_ Pai...!! Fei não é um ladrão!!
_ Então, o que ele é? – Erich continuou sem olhar para a filha, mantendo Fei sob mira – Um homem estranho no meu quarto... e não é um ladrão?
_ Há uma razão para isso...!!
Erich olhou nos olhos da filha por um momento, mas tornou a voltar os olhos para Fei, que se manteve imóvel. Ele não parecia assustado, tampouco, estranhamente relaxado, enquanto todos os seus sentidos estavam em alerta. Seria mais simples para ele se Elly não estivesse diante de si, mesmo sabendo que não poderia atacar com plena força. Afinal, era o pai dela que o estava ameaçando. Mas não podia esperar pela guarda.
_ Por favor, não atire nele! – Elly implorou – Fei só quer salvar seus amigos aprisionados! Eles são meus amigos, também!
_ Não! – Erich firmou a pistola, parecendo notar de repente que Fei estava tranquilo demais em tal situação – Mesmo que ele seja seu amigo, eu não posso ignorar um habitante da superfície que tenta entrar escondido no palácio!
_ ... Ótimo – a atitude de Elly mudou, e ela avançou um passo na direção do pai – Então, eu também sou uma traidora. Vá em frente e atire em mim!
_ Não! Você vai ficar aqui! Agora saia do caminho, Elly!
_ Não!
Erich estava aborrecido, e isso era evidente em sua postura. No entanto, ele começava a trair algo maior em sua forma de agir, algo parecido com temor. Tenso, ele tornou a olhar nos olhos da filha.
_ Você sabe como os traidores são punidos, mesmo que sejam cidadãos de Primeira Classe! Vai estar a salvo se matarmos os intrusos que sabem sobre nós. Eu só estou preocupado com a sua segurança...
Elly deu as costas ao pai, falando para o chão para não ter que olhar nos olhos de Fei.
_ ... Você está mentindo... Você só odeia estar em qualquer situação que te ponha em risco. Não é por isso que você não queria que eu me alistasse em Jugend? Você... só não queria que todos vissem a sua filha! – e tornou a se voltar para o pai – Porque eu sou meio habitante da superfície...!
Aquilo era mais do que Medena poderia suportar assistir, ou Erich poderia suportar ouvir. A mãe de Elly saiu do aposento, e o pai bateu no rosto da filha, derrubando-a.
_ Eu não consigo acreditar que você ainda...? Como ousa dizer isso na frente da sua mãe...!
_ Por que...!
_ Parem com isso!! – Fei colocou-se entre Elly e Erich, ajudando a moça a ficar de pé e olhando para o outro – Eu não quero ver um pai e uma filha brigarem por minha causa. Não vou causar mais problemas a vocês. Eu vim de minha livre vontade. Sou um intruso. Se eu puder apenas sair daqui, vai ficar tudo bem.
_ Fei...?!
_ Elly – o olhar triste dele para ela a fez ficar quieta – você não devia dizer aquilo na frente da sua mãe. Eu não sei da verdade, mas ela é sua mãe, não uma estranha. Não é mesmo?
Elly baixou a cabeça sem dizer mais nada. E Fei se voltou para Erich.
_ Agora, saia do caminho. Eu tenho que me apressar pra salvar meus amigos. Mas, se pretende atirar em mim, eu vou dar uma boa briga antes de ser preso.
Erich continuou a olhar para os olhos do rapaz por um momento, a expressão indecifrável, e então se afastou, ficando de costas para eles.
_ ? Pai...?
_ O intruso escapou – ele respondeu, sem se voltar – Agora saia daqui. Vai levar algum tempo até que os guardas cheguem.
Ele se voltou então, e a hostilidade fria fora substituída por respeito, e também algo como cansaço.
_ Você pode ser um intruso, mas o fato é que protegeu minha filha. Se eu atirar em você, vou perdê-la.
_ Pai... Deixa eu ir com o Fei...!
_ Não. Eu não posso deixar você ir.
_ Mas...!
_ Está tudo bem.
Elly e Erich se voltaram. Fei estava se afastando, parando no lance de escadas diante da porta do quarto e voltando-se para os dois.
_ Isso é um problema de habitantes da superfície agora – disse, olhando então para Erich – Não vamos dar mais trabalho a vocês. Eu vou sozinho.
_ Fei!!
_ Elly, dessa vez, abandone o exército – e sorriu – Obrigado por tudo.
_ Fei...
Sem outra palavra, Fei voltou-se e partiu, ganhando as ruas novamente.

  

CAN FIND THE ANSWERS, AND THEN

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