Capítulo 41: Lobo Solitário
_ Entra, Fei. Esse é o meu
quarto.
Fei olhou ao redor. Todo o
ambiente parecia feito do mesmo metal prateado com o qual cada habitação de
Solaris era produzida, e ainda assim, não havia como confundir sequer o quarto
de Elly com qualquer das habitações que vira até então. Ele pensava que os
cidadãos de Segunda Classe viviam de maneira luxuosa, mas não havia comparação
possível entre os cômodos discretos que vira de passagem e aquele único
aposento. E Elly parecia estar chegando de um longo dia de trabalho ao invés de
um afastamento de semanas, esticando os braços e sacudindo os cabelos para
aliviar a tensão.
_ Ahh, finalmente posso relaxar
um pouco...!
_ Esse lugar... é enorme! – Fei
balbuciou quase sem pensar – Deve ser maior que a casa inteira do chefe da
vila!
_ Heh – ela aceitou o cumprimento
com um sorriso – Nossa, estou suada depois da correria... Então, acho que vou
tomar um banho.
_ Você tem um banheiro no quarto?
_ É muito normal – Elly deu de
ombros, entrando com naturalidade em um cilindro transparente no centro do
aposento, embora Fei tivesse para si mesmo que não havia nada de normal naquilo.
E ele apenas entendeu que aquele cilindro devia ser o chuveiro quando Elly,
após um longo instante de silêncio, perguntou:
_ Até quando vai ficar olhando?
Tremendamente encabulado,
arregalando os olhos e ficando vermelho, Fei ficou de costas de pronto. Em
pouco tempo, podia-se ouvir o som suave de um chuveiro ligado, enquanto o vidro
translúcido ficava opaco com o vapor. Um pouco inquieto, sem coragem de se
voltar, Fei perguntou:
_ Ei, Elly... Aquela era a sua
mãe?
_ É ela, sim – veio a voz de Elly
de dentro do cilindro.
_ Ah. Ela, com certeza, é uma
senhora muito bonita.
_ ... É. É, sim.
Fei não deixou de notar a
hesitação antes da resposta dela, e embora tivesse alguma dúvida quanto a
continuar tocando no assunto, ele não pôde refrear sua curiosidade.
_ ... Mas, você não parece muito
com ela. Você puxou mais ao seu pai?
O som do chuveiro parou, e fez-se
silêncio por outro longo momento antes que Elly tornasse a falar, com a voz um
pouco mais baixa.
_ Você não percebeu ainda?
_ ... Do quê está falando?
_ A cor da minha pele, meu cabelo
e olhos – o som do chuveiro se fez ouvir de novo, mas agora, Fei estava mais
concentrado na voz de Elly – são diferentes de solarianos normais.
_ Pra falar a verdade, eu não
prestei muita atenção... É sério?
_ ... Há muito tempo atrás,
quando eu era pequena, eu tive uma babá. Ela era tão gentil comigo...! Mas, ela
era uma habitante da superfície. E Cidadãos de Primeira Classe raramente se
associam com eles. Mas a babá vivia na nossa casa e tomava conta de mim. Ela
perdeu a filha quando estava na área da Terceira Classe... Meu pai sentiu pena
dela e a manteve sob sua proteção. Mas ele nunca falou a ninguém sobre ela...
_ Por quê?
_ Meu pai estava preocupado com a
minha aparência... Ele tinha uma razão pra isso – o som do chuveiro parou
novamente, e a voz de Elly foi ainda mais baixa, quase como se ela quisesse
esconder o que diria até de si mesma – Ela... provavelmente era a minha
verdadeira...
_ Elly...
_ É melhor eu não... – ela
parecia envergonhada, notando que tinha falado demais – Eu... tenho certeza de
que você não quer ouvir a respeito... Desculpe.
_ Está tudo bem...
Minutos depois, Elly saiu do
cilindro de banho e os dois não tornaram a tocar no assunto. Ela já estava
novamente com seu uniforme, que parecia limpo também, e a moça alegremente
empurrou Fei para dentro.
_ Agora é a sua vez!
_ Não, obrigado, eu não tenho
tempo pra...
_ Anda, você precisa relaxar! Não
se tem uma chance dessas com muita frequência.
_ Mas...!
_ Por favor...?
Ele não soube o que responder
quando olhou para os olhos azuis dela, sem querer parecer rude e sem querer
ceder ao mesmo tempo, e quando deu por si mesmo, Elly já o havia empurrado para
dentro do cilindro e fechado a porta. Não havia mais o que discutir.
_ Tá, tudo bem... Se você
insiste!
_ Devia ter me escutado desde o
começo.
Ela se afastou e Fei,
tremendamente sem jeito, começou a se despir. Mal terminara quando um jato de
água morna caiu sobre ele, e ele deixou sua surpresa escapar na forma de um
grito.
_ Você está bem. É só relaxar –
veio a voz de Elly lá de fora, e ele teve que concordar. Passada a surpresa, a
sensação da água morna era excelente, parecendo relaxar músculos que ele não
percebera estarem exaustos até então, e parecia haver algo parecido com sabão
na água, também. Não feria os olhos, fazia a água vir perfumada e também
ajudava no relaxamento, e ele começou a esfregar o rosto.
_ Uau... Isso é ótimo! Não tem a
menor comparação entre isso e a velha banheira do doc...!
Ele teve então uma sensação
incômoda e voltou-se. Lá estava Elly, do lado do cilindro e aparentemente
olhando para dentro, apesar do vidro embaçado pelo vapor.
_ E-ei, pára com isso! – ele
ficou de costas, sentindo o rosto corar novamente – Pare de ficar me olhando!
_ Não se preocupe, eu não estou
olhando – mas a voz dela, soando divertida, o deixou em dúvida – Só estou
ajustando o chuveiro. Como está a temperatura?
_ Tá bem, tá tudo bem. Só saia
daí, anda!
Dissesse ela o que dissesse, ele
não ia ficar à vontade para tomar banho com uma moça olhando para ele. E ficou
ainda mais sem jeito quando ouviu a voz dela, se afastando, dizer:
_ Aha, ha ha ha... Parece que eu descobri que Fei também
tem um ponto fraco.
O banho durou pouco; por
agradável que fosse, ainda havia muito a ser feito e tendo recuperado suas
roupas e saído do cilindro, Fei considerou a próxima ação.
_ E agora, o que fazer...? Não dá
tempo pra relaxar.
_ É, eu não queria mesmo fazer
isso – Elly parecera ter ficado ponderando enquanto Fei terminava seu banho,
sentada sobre a cama – mas não temos qualquer escolha.
_ Tem alguma boa idéia, Elly?
_ O terminal de rede do quarto do
meu pai – ela ficou de pé – Ele ficou zangado comigo uma vez por mexer lá. Há
informação numerosa à qual apenas um punhado de pessoas tem acesso.
_ Então, podemos descobrir onde
Bart e os outros estão usando isso?
_ Eu... espero que sim. Mas, pra
usar o terminal, preciso entrar no quarto dos meus pais – e Elly pareceu
entregue à reflexão, tentando planejar uma forma de acessar o computador do pai
– Com a minha mãe por perto não vai ser fácil, e isso precisa ser antes do meu
pai voltar do serviço. Se eu conseguir distraí-la um pouco, acho que você
consegue acessar... Ah, mas vai estar tudo escrito em solariano, você não vai
conseguir entender! E há os códigos, também...!
_ Hã, Elly, calma aí – Fei pediu,
um pouco sem jeito, mas ela fez um gesto impaciente de silêncio e continuou,
como se não o tivesse ouvido:
_ Então, você podia distraí-la
enquanto eu acesso o banco de dados... Ah, mas a minha mãe não vai se distrair
só com isso, ela vai querer ficar conversando comigo pra compensar o tempo que
passei fora... Só se você falasse do que eu andei fazendo...! Mas, pra manter
ela distraída o bastante, você ia ter que contar histórias muito boas, e vai
ter que ser tudo falso, porque não dá pra falar do que andamos fazendo
derrubando o ‘Ethos’, visitando Shevat e...
_ Elly! – Fei chamou, visivelmente
incomodado. Era a primeira vez que a via daquele jeito, parecendo confusa mesmo
enquanto falava consigo mesma. E então, batidas suaves na porta chamaram a
atenção dos dois, e Medena entrou no quarto.
_ Mãe...! O que foi?
_ Estou interrompendo...? Ah, mas
parece que já terminaram seu relatório, não foi?
_ Ah... É, terminamos sim.
_ Ah, Elly – Medena parecia muito
emocionada – Estou tão feliz que esteja de volta... Deixa eu olhar pra você.
Fei sentiu-se um pouco
embaraçado. Era a reação natural de uma mãe, ele presumia, ao ver uma filha que
pensara ter morrido, e nada mais natural dadas as circunstâncias, mas uma vez
que tinham estado planejando uma forma de enganá-la, ele não tinha como não se
sentir culpado. E Medena continuou falando:
_ Seu pai disse que você
voltaria, mas eu já tinha quase abandonado as esperanças.
_ ... Mãe...
_ Vai ficar em casa por algum
tempo dessa vez? Você deveria ter algum tempo para relaxar antes de voltar ao
serviço agora. Seu pai vai ficar tão feliz...!
_ S-sim, eu vou... Acho.
_ Sabe, acho que podíamos
celebrar isso com um belo banquete! – Medena abriu um sorriso ainda mais
satisfeito – Fei, gostaria de se juntar a nós? Elly nunca convida os amigos,
estou muito feliz que esteja aqui. Fiquem à vontade enquanto eu vou às compras.
E ela saiu do quarto, deixando os
dois a sós e em silêncio por um instante, antes que Elly ficasse de pé.
_ É agora ou nunca. Precisamos
ir, Fei!
_ Hã? Ir aonde?
_ Podemos aproveitar enquanto
minha mãe saiu pra usar o computador, anda! É a nossa melhor chance! Quero
terminar isso antes do meu pai chegar.
Certificando-se de que Medena já
tinha saído, os dois foram até os aposentos dos pais de Elly, onde ao fundo uma
escrivaninha com terminal de computador acoplado eram claramente visíveis, e
movida pela urgência, a moça digitou algo no teclado e o trouxe à vida.
_ É isso! Se pudermos atravessar o serviço de
segurança da rede do palácio acessando esse terminal – o rosto de Elly pareceu
tenso com a concentração enquanto Fei olhava para ela e para a porta atrás
deles, e ela novamente ponderava em voz alta – ID... A senha provavelmente
seria algo relacionado comigo.
Elly digitou ‘E-L-H-A-Y-M’
no teclado e, após um segundo processando, a máquina respondeu:
_ ... Acesso negado. Entre a
senha correta.
_ ... Assim não funciona – Elly
franziu o cenho – Vamos tentar de trás pra frente...
Novamente Elly completou o espaço
da senha, agora digitando ‘M-Y-A-H-L-E’. Mais um instante de pausa, e o
terminal respondeu:
_ Bem vindo à Rede de Informações
de Solaris. Você tem 19 mensagens não lidas.
_ Isso! Consegui! – Elly
comemorou – Vejamos, estávamos aqui antes, então... Uau! Conecta com isso aqui!
Fei não deixou de admirar o
quanto ela ficou empolgada com o sucesso, voltando-se para ele e dizendo:
_ Fei, devemos poder conseguir
chegar ao lugar onde todos estão... e nosso acesso vai ter que ser uma calha de
despejo de lixo do nível de cidadãos de Terceira Classe!
_ O que quer dizer, vamos ter que
voltar para onde estávamos antes.
_ Agora sabemos onde estamos!
Vamos, precisamos correr!
_ Elly, onde está indo?
Nenhum dos dois percebera o
momento em que Medena entrara, e ela não estava sozinha. Um senhor de meia
idade e aparência severa entrou com ela, vestindo uma das fardas da Gebler e
cabelos loiros. O pai de Elly.
_ Pai...!
_ O que está fazendo, Elly...? Eu
já havia dito a você para não vir aqui e tocar nessa máquina.
Elly não respondeu, pensando
depressa enquanto o pai foi até a parede e tocou um comunicador interno, tudo
sob o olhar aflito da esposa.
_ Erich, não...
_ Alô, é o guarda? – ele ergueu a
mão para silenciar a esposa – Sou eu, Erich. Um ladrão entrou aqui. Isso.
Venham imediatamente.
E sacou uma pistola, mantendo Fei
sob mira sem dizer palavra, até que Elly se interpôs entre eles.
_ Pai...!! Fei não é um ladrão!!
_ Então, o que ele é? – Erich
continuou sem olhar para a filha, mantendo Fei sob mira – Um homem estranho no
meu quarto... e não é um ladrão?
_ Há uma razão para isso...!!
Erich olhou nos olhos da filha
por um momento, mas tornou a voltar os olhos para Fei, que se manteve imóvel.
Ele não parecia assustado, tampouco, estranhamente relaxado, enquanto todos os
seus sentidos estavam em alerta. Seria mais simples para ele se Elly não
estivesse diante de si, mesmo sabendo que não poderia atacar com plena força.
Afinal, era o pai dela que o estava ameaçando. Mas não podia esperar pela
guarda.
_ Por favor, não atire nele! –
Elly implorou – Fei só quer salvar seus amigos aprisionados! Eles são meus
amigos, também!
_ Não! – Erich firmou a pistola,
parecendo notar de repente que Fei estava tranquilo demais em tal situação –
Mesmo que ele seja seu amigo, eu não posso ignorar um habitante da superfície
que tenta entrar escondido no palácio!
_ ... Ótimo – a atitude de Elly
mudou, e ela avançou um passo na direção do pai – Então, eu também sou uma
traidora. Vá em frente e atire em mim!
_ Não! Você vai ficar aqui! Agora
saia do caminho, Elly!
_ Não!
Erich estava aborrecido, e isso
era evidente em sua postura. No entanto, ele começava a trair algo maior em sua
forma de agir, algo parecido com temor. Tenso, ele tornou a olhar nos olhos da
filha.
_ Você sabe como os traidores são
punidos, mesmo que sejam cidadãos de Primeira Classe! Vai estar a salvo se
matarmos os intrusos que sabem sobre nós. Eu só estou preocupado com a sua
segurança...
Elly deu as costas ao pai,
falando para o chão para não ter que olhar nos olhos de Fei.
_ ... Você está mentindo... Você
só odeia estar em qualquer situação que te ponha em risco. Não é por isso que
você não queria que eu me alistasse em Jugend? Você... só não queria que todos
vissem a sua filha! – e tornou a se voltar para o pai – Porque eu sou meio
habitante da superfície...!
Aquilo era mais do que Medena
poderia suportar assistir, ou Erich poderia suportar ouvir. A mãe de Elly saiu
do aposento, e o pai bateu no rosto da filha, derrubando-a.
_ Eu não consigo acreditar que
você ainda...? Como ousa dizer isso na frente da sua mãe...!
_ Por que...!
_ Parem com isso!! – Fei
colocou-se entre Elly e Erich, ajudando a moça a ficar de pé e olhando para o
outro – Eu não quero ver um pai e uma filha brigarem por minha causa. Não vou
causar mais problemas a vocês. Eu vim de minha livre vontade. Sou um intruso.
Se eu puder apenas sair daqui, vai ficar tudo bem.
_ Fei...?!
_ Elly – o olhar triste dele para
ela a fez ficar quieta – você não devia dizer aquilo na frente da sua mãe. Eu
não sei da verdade, mas ela é sua mãe, não uma estranha. Não é mesmo?
Elly baixou a cabeça sem dizer
mais nada. E Fei se voltou para Erich.
_ Agora, saia do caminho. Eu
tenho que me apressar pra salvar meus amigos. Mas, se pretende atirar em mim,
eu vou dar uma boa briga antes de ser preso.
Erich continuou a olhar para os
olhos do rapaz por um momento, a expressão indecifrável, e então se afastou,
ficando de costas para eles.
_ ? Pai...?
_ O intruso escapou – ele
respondeu, sem se voltar – Agora saia daqui. Vai levar algum tempo até que os
guardas cheguem.
Ele se voltou então, e a
hostilidade fria fora substituída por respeito, e também algo como cansaço.
_ Você pode ser um intruso, mas o
fato é que protegeu minha filha. Se eu atirar em você, vou perdê-la.
_ Pai... Deixa eu ir com o Fei...!
_ Não. Eu não posso deixar você
ir.
_ Mas...!
_ Está tudo bem.
Elly e Erich se voltaram. Fei
estava se afastando, parando no lance de escadas diante da porta do quarto e
voltando-se para os dois.
_ Isso é um problema de
habitantes da superfície agora – disse, olhando então para Erich – Não vamos
dar mais trabalho a vocês. Eu vou sozinho.
_ Fei!!
_ Elly, dessa vez, abandone o
exército – e sorriu – Obrigado por tudo.
_ Fei...
Sem outra palavra, Fei voltou-se
e partiu, ganhando as ruas novamente.
CAN FIND THE ANSWERS, AND THEN
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