sábado, 7 de maio de 2016

Capítulo Quarenta Ponto Um

(...)

Preso no tubo, parecendo desconcertado enquanto tudo parecia voltar a uma posição normal, Fei olhou ao redor e sentiu que finalmente parara.
_ E agora, onde é que eu estou...?
Saiu do tubo metálico, e viu-se numa plataforma flutuante que seguiu com ele até uma imensa área metálica, semelhante a uma rua. Descendo e olhando ao redor, Fei percebeu estar diante de painéis sextavados divididos em inúmeros triângulos, de forma muito semelhante a uma colméia. E mal descera, ouviu alguém gritar:
_ N-nããããããoooooo! Não aguento mais!!
Voltou-se. Uma pessoa estava de pé numa das estruturas sextavadas da parede, um pequeno robô amarelo flutuando diante dele enquanto esbravejava:
_ Alguma coisa está errada com todos vocês! Trabalhando feito máquinas, dia após dia... Vocês não têm vontade! Isso não é viver!! Isso é... É...! Pare! Solta!
O robô flutuante estava carregando o cidadão pelo ar, enquanto ele parecia se decidir se devia ou não continuar se debatendo. E a máquina passou sobre Fei e para além da rua, detendo-se sobre o imenso vazio entre as plataformas sextavadas que formavam o piso, deixando então o protestante cair e desaparecer.
_ Os destinos de todos nós estão unidos num só – um pedestre ao lado de Fei murmurou, meio que para si mesmo – São os descontentes como ele que fazem com que todos sejamos punidos. Me mata pensar que todo o nosso trabalho pra melhorar o nível do nosso bloco esteja arruinado.
_ O que disse? – Fei voltou-se para o cidadão – ‘Posição’...?
_ É, eu quero subir um nível e me tornar cidadão de Segunda Classe – um segundo pedestre comentou – Então, finalmente eu vou poder viver com a Segunda Classe.
_ Um bocado de pessoas tem tentado alterar as identificações e escapar, ultimamente – outro pedestre comentou, quase parecendo assustado – Geralmente eles são pegos e ‘rearranjados’, ou re-educados. Nem sequer pense em tentar escapar.
E um dos painéis sextavados de repente se moveu, desaparecendo em pouco tempo dentro da parede. O primeiro pedestre sacudiu a cabeça em negativa, reprovando.
_ E eles trabalharam tanto...! Se ele não tivesse criticado o sistema, nada disso teria acontecido. Agora os dois vão ser re-educados.
Fei sacudiu a cabeça, entre revoltado e horrorizado. Apesar da evidente modernidade que emanava do lugar, aquilo era só outro bloco de prisioneiros, idêntico a Nortune. Talvez pior; ao menos, não havia execuções públicas para controle da população nas ruas de Kislev.
_ Não devia ter morrido em vão – outra voz disse, e Fei se voltou assustado, porque parecia tremendamente familiar. Mas, não podia ser...?
_ T-Timothy?
_ Não, o nome é Samson – o homem que lembrava seu amigo morto em Lahan respondeu – Mas, ei, eu te conheço! Do Torneio em Aveh...! Infelizmente, eu perdi na primeira rodada. Desmaiei no caminho de casa...
_ E...?
_ Quando dei por mim, já estava aqui. Todos os outros foram o que chamam de ‘rearranjados’. É uma mistura entre lavagem cerebral e amnésia. Mas fizeram alguma bobagem na minha vez, acho, porque ainda consigo me lembrar.
_ Então... O que houve com aquela pessoa de agora há pouco...?
_ É, ele também – Samson baixou a cabeça – Morreu em vão... Um dos meus poucos amigos, também. Eu não vou sair daquele jeito. Sabe aquela torre de guarda ali, perto de nós? Eu vou passar por ela até o bloco de Segunda Classe, então vou invadir o porto naval e dar tchauzinho pra sempre pra Solaris.
_ É possível se fazer isso?
_ É sim, porque eu consegui um passe – Samson mostrou o cartão – Me colocaram pra trabalhar no porto naval. Só tenho permissão de sair no meu turno, mas já ‘resolvi’ esse probleminha. E, que tal? Você pode vir junto! Com a sua força, estamos fora!
Na verdade, Fei não tinha planos de sair de Solaris ainda; mal chegara, e não cumprira sua missão. Mas, alcançando o porto no bloco da Segunda Classe, poderia ajudar o rapaz a escapar e ainda procuraria por Citan e Elly.
_ Tudo bem, eu concordo.
_ Isso aí, esse é o espírito! Mas – e falou baixo, procurando ao redor – é melhor tomar cuidado! Uma garota da Gebler acabou de passar por aqui por alguma razão.
_ Gebler?! – Fei olhou ao redor – E, ela por acaso tinha cabelo ruivo?
_ É, essa aí mesmo!! O quê – olhou desconfiado para Fei – vocês são amigos, por acaso? Falar nisso, ela estava mesmo procurando por alguém... Ela ainda deve estar por aí em algum lugar. Devia ir procurar.
Agradecendo e tomando o rumo indicado por Samson, Fei acabou descobrindo que as plataformas flutuantes serviam como elevadores particulares, cada uma conduzindo a um nicho diferente entre os painéis sextavados. E após de experimentar alguns deles, encontrou-se com Elly no compartimento 10-1-1.
_ Elly!
_ Fei! Ah, Fei, você é tão descuidado! Se está tentando se infiltrar na base, você tem que ser sutil!
_ Desculpe... Bem, onde nós estamos?
_ Estamos no ‘Bloco F da Terceira Classe’ de Solaris – Elly explicou, mostrando uma tela holográfica de computador – Existem por volta de vinte blocos de cada, com habitantes da terra morando neles. Nós Solarianos estamos a par de toda a informação pessoal... A estrutura de DNA de todos é registrada a nível molecular. E mesmo a classe deles... Sabe do quê esses cidadãos são chamados?
_ Não...
_ ‘Abelhas Operárias’ – Elly voltou-se para Fei – Por causa da forma dos blocos de habitação deles. Essas pessoas fornecem o trabalho manual vital para o centro de apoio de Solaris. Fiz uma viagem de campo para cá uma vez, há muito tempo. Eu lembro de pensar que as vidas deles não tinham nada a ver comigo. Nunca pensei que eu terminaria aqui, desse jeito...
_ Então, isso quer dizer que você deve saber para onde ir daqui, Elly.
_ Vagamente – ela acenou com a cabeça – Precisamos escapar primeiro.
_ Ah, e por falar nisso, onde foi parar o Doc?
_ Ele entrou num casulo diferente pra procurar você. Deve ter ido parar em um bloco diferente.
_ Droga... Estamos todos separados.
E por culpa sua, ele se recriminou. Depois de criticar tanto a impulsividade de Bart, agira igualzinho ao amigo. E aquele não era um lugar para que cometessem enganos. Mas Elly não parecia muito abalada.
_ Eu não me preocuparia com Citan. Ele conhece esta cidade melhor do que eu.
_ Me pergunto se Bart e os outros conseguiram?
_ Jessie está com eles, então acho que devem estar bem. Seja como for, vamos andando. Precisamos encontrar uma forma de sair desse bloco.
_ Eu acho que já encontrei, na verdade.
E Fei contou a ela sobre seu encontro com Samson e o que o outro dissera, conseguindo um olhar de aprovação de Elly.
_ Muito bom, Fei! Sim, deve ser mais simples nos movermos a partir da Segunda Classe. E onde encontramos essa pessoa?
_ Ele disse que estaria esperando próximo à torre de vigilância. Vamos.
Os dois dirigiram-se à torre de vigilância e, passada a surpresa de Samson ao ver a ‘garota da Gebler’ com o campeão do Torneio de Aveh, ele os conduziu para dentro. Uma vez fechada a porta, ele disse:
_ Daqui por diante, é melhor se nos dividirmos. É um labirinto, então tenham cuidado.
_ Certo, você também.
Samson deu-lhes polegar erguido e avançou primeiro. Depois de darem uma curta dianteira a ele, Elly e Fei seguiram.
A descrição de Samson não poderia ter sido melhor. Um labirinto, de fato, e Elly alertou Fei para os sistemas de segurança. Drones vasculhavam cada corredor, e eles apenas podiam avançar quando a passagem ficava livre. Depois de alguns minutos tensos esquivando-se pelos corredores e junções, chegaram ao ponto de checagem adiante do labirinto, reunindo-se a Samson, que sorriu.
_ Nada mal. Acho que vou eu mesmo à frente, daqui.
_ Espere! Você não é um Gazel! – Elly alertou – O que vai fazer?
_ Sem problema. Eu usei tecnologia marginal pra reescrever minha ID. Fique só olhando.
Elly estava temerosa do que podia acontecer, Fei percebeu sem entender, enquanto Samson subia no que parecia apenas uma esteira de bagagens com lâmpadas fluorescentes no piso. Os scanners fizeram a leitura e a voz do computador seguiu:
_ ... Leitura de ID... Incorreta. Eliminar.
Não houve tempo para que fizessem coisa alguma, nem mesmo para Samson recuar. Feixes de laser o desintegraram onde estava e, passado o choque do primeiro momento, Fei ergueu os punhos.
_ Maldita máquina... Eu vou acabar com você!
_ Não! Vai ser inútil fazer isso – Elly o deteve – Você não vai conseguir atravessar sem ter ou uma ID de Cidadão de Primeira Classe ou uma ID militar.
_ Então, o que vamos fazer?
_ Bom, não podemos simplesmente ficar parados aqui... Acho que vai ter que ser tudo ou nada.
_ Se não funcionar... nos preocupamos com isso mais tarde. É o que você está dizendo? – ele deu um sorriso fraco – Isso parece algo que o Bart diria.
_ Ai, que grosseiro – Elly pareceu emburrada – Não é como se eu sempre fizesse as coisas sem um plano. Acho que precisamos passar os dois juntos, ao mesmo tempo. Isso deve enganar os sensores.
_ Espera um pouco, como assim ‘os dois juntos’? Dá pra fazer isso?
_ S-sim, eu acho – Elly parecia um tanto sem jeito – Se nós... passarmos ao mesmo tempo, bem próximos um do outro, os sensores provavelmente só vão detectar a mim.
Fei olhou significativamente para a máquina. Se acabassem desintegrados... Bem, ao menos parecia ser rápido. Tornou a olhar para Elly.
_ Acha mesmo que vai funcionar? Que vai reconhecer você?
_ S-sim, eu acho...
_ Tá. É o bastante pra mim.
E sem palavra, Fei tomou Elly nos braços e os dois subiram nos sensores, ela olhando espantada e com as faces vermelhas enquanto ele próprio olhou para a máquina, parecendo preocupado. Passado um instante de silêncio, a mensagem da voz metálica se fez ouvir:
_ ... Cidadão de Primeira Classe, Gazel, confirmada. Por favor, prossiga de modo ordenado.
_ Isso! – Fei exultou – Nós podemos passar!
Foi quando ele percebeu o rosto de Elly, a expressão ainda distante e olhando para longe dele, como se estivesse perdida em pensamentos.
_ Elly? O que foi?
_ ... Hã? Ah, bem... É que, depois de tudo o que eu fiz, estou surpresa que ainda não tenham me rotulado como traidora.
_ ... Você acha que eles ainda não relataram isso? Para a Gebler, isso seria como admitir uma falha; não acho que quisessem isso.
_ ... Espero que sim.
_ Certo! Então, vamos andando!
Seguiram adiante, subindo pelo elevador da torre de guarda e saindo enfim num salão circular, onde um guarda na porta os deteve.
_ Ei! Por que estão saindo por aí? Venham pra cá!
Antes sequer que Fei pudesse se preocupar, Elly tomou a frente e retrucou, com atitude:
_ ‘Eu sou uma tenente das Forças Imperiais Especiais, Elhaym Van Houten. Acabei de completar a coleta da leva especial do nível de Terceira Classe. Estou agora no processo de levar este habitante da superfície ao Q.G. Algum problema com isso?’
Fei não compreendera a conversa em solariano, mas era evidente pela atitude do guarda e a de Elly que ela usara sua autoridade de oficial da Gebler para que passassem. Era fácil imaginar que, mesmo em Solaris, não deviam haver muitos dispostos a criar problemas com a Gebler. As outras pessoas ao redor tinham um ar de superioridade do qual Fei não gostou, e achou que talvez fosse melhor não entender o que estavam dizendo. Imaginou se eles já saberiam que seus Portões tinham sido destruídos, e não eram mais tão inatingíveis quanto de costume.
Saíram no que parecia uma praça central repleta de acessos e escadarias para pisos superiores e inferiores. Não parecia ser algo novo para Elly, mas Fei estava muito admirado com tudo. Até onde sua visão podia alcançar, o piso era metálico, repleto de luzes e com mostradores holográficos de notícias. As pessoas tinham um ar saudável e roupas de qualidade e sobriedade, mas por uma estranha razão, ele sentia que havia algo de errado. A vida parecia perfeita para os habitantes de Solaris; perfeita até demais.
_ Artificial – ele murmurou, fazendo com que Elly se voltasse – O padrão de vida daqui... Tudo parece tão correto, tão ordenado... Não parece um lugar onde pessoas de verdade vivam.
E então Fei pareceu dar-se conta de Elly, olhando para ele com aquele ar de estranheza, e desculpou-se:
_ Ah... Perdão, Elly. E-eu... acho que estava pensando em voz alta.
_ ... Está tudo bem. Eu sei o que quer dizer – e ela acenou em afirmação enquanto ele parecia surpreso – Nasci e me criei em Solaris, então isso deveria ser muito natural pra mim, e a vida na terra lá embaixo deveria ser estranha... mas, por alguma razão que não sei explicar, o que senti ao ver a vida na superfície foi alívio. Era como se, finalmente... eu estivesse vendo a vida real de pessoas reais. Por isso me pareceu tão estranho ouvir você dizer isso; acho que nunca parei para pensar em como outras pessoas viam Solaris.
_ Elly...
E então perceberam uma comoção próxima; ao lado de um elevador entre os pisos, um guarda em trajes negros estava barrando o avanço de outros cidadãos.
_ Sinto muito, mas sem acesso especial, ninguém pode seguir. Estes são lugares especiais para a cerimônia de dedicação.
_ ‘Cerimônia de dedicação’ – Elly murmurou ao lado de Fei – Solaris provavelmente não está indo tão bem agora.
_ Hã? – Fei olhou ao redor sem entender – Por que temos que assistir isso? Decidimos que íamos encontrar com todos os outros. Não temos tempo pra ir a esse festival.
_ Não é um festival comum. As pessoas estão perturbadas com a destruição do Portão. A dedicação provavelmente é para acalmar as massas. Precisamos checar a postura de Solaris quanto a habitantes da terra. Temos que assistir à cerimônia, Fei.
Havia muita movimentação ao redor da praça central. Não foi difícil para Fei notar que as pessoas, de fato, pareciam inquietas, como Elly dissera. Mal pareciam olhar ao redor enquanto naves imensas se posicionavam no céu claro sobre eles, um teto de cristal translúcido mostrando o topo da imensa estrutura que era Solaris com suas várias hastes estendendo-se em todas as direções. Num ponto mais alto sobre a praça havia um brasão, o símbolo de Solaris que Fei já vira em naves e uniformes da Gebler. De lá, numa imagem ampliada em várias vezes por holoprojetores, foi possível ver um trono erguer-se com uma figura de expressão mumificada em um longo manto vermelho. A presença do Imperador Cain deu início a um coro de saudação, ao qual o rapaz não se uniu. Sentira ao mesmo tempo admiração e um medo instintivo ao ver aquela figura de feições de esqueleto, cuja voz foi irradiada pela praça:
_ Meus amados filhos, vocês podem ficar em paz. O Ministério Gazel e eu planejamos a destruição do Portão há muito tempo atrás.
“As pessoas escolhidas por Deus... Nós, os Gazel, retornaremos ao paraíso de Deus. Para a deusa mãe adormecida. O tempo de nossa imortalidade chegou”.
“Nós abrimos a porta para ‘Mahanon’... O local onde Deus descansa, a fonte de sabedoria e poder. Os habitantes da superfície sem dúvida usarão esta oportunidade para dominar seu poder. No entanto, não há necessidade alguma de preocupação... Desde que Solaris tenha esse poder...”
E sua voz ficou mais alta e poderosa, cobrindo o coro de aclamação por um instante, e a praça inteira pareceu estremecer.
_ Vamos mostrar a essas feras estúpidas, os Cordeiros, nosso verdadeiro poder!
As naves no céu começaram a disparar fogos de artifício enquanto o azul cristalino pareceu escurecer, e Fei precisou de um instante a mais para perceber que aquilo devia ser um efeito artificial produzido no cristal do teto. Voltando-se, ele reparou nas expressões vidradas das pessoas à sua volta e, mais perturbador, de Elly também.
_ Elly...? Ei, Elly!

Nenhum comentário:

Postar um comentário