(...)
Preso no tubo, parecendo
desconcertado enquanto tudo parecia voltar a uma posição normal, Fei olhou ao
redor e sentiu que finalmente parara.
_ E agora, onde é que eu
estou...?
Saiu do tubo metálico, e viu-se numa
plataforma flutuante que seguiu com ele até uma imensa área metálica,
semelhante a uma rua. Descendo e olhando ao redor, Fei percebeu estar diante de
painéis sextavados divididos em inúmeros triângulos, de forma muito semelhante
a uma colméia. E mal descera, ouviu alguém gritar:
_ N-nããããããoooooo! Não aguento
mais!!
Voltou-se. Uma pessoa estava de
pé numa das estruturas sextavadas da parede, um pequeno robô amarelo flutuando
diante dele enquanto esbravejava:
_ Alguma coisa está errada com todos
vocês! Trabalhando feito máquinas, dia após dia... Vocês não têm vontade! Isso
não é viver!! Isso é... É...! Pare! Solta!
O robô flutuante estava
carregando o cidadão pelo ar, enquanto ele parecia se decidir se devia ou não
continuar se debatendo. E a máquina passou sobre Fei e para além da rua,
detendo-se sobre o imenso vazio entre as plataformas sextavadas que formavam o
piso, deixando então o protestante cair e desaparecer.
_ Os destinos de todos nós estão
unidos num só – um pedestre ao lado de Fei murmurou, meio que para si mesmo –
São os descontentes como ele que fazem com que todos sejamos punidos. Me mata
pensar que todo o nosso trabalho pra melhorar o nível do nosso bloco esteja
arruinado.
_ O que disse? – Fei voltou-se
para o cidadão – ‘Posição’...?
_ É, eu quero subir um nível e me
tornar cidadão de Segunda Classe – um segundo pedestre comentou – Então,
finalmente eu vou poder viver com a Segunda Classe.
_ Um bocado de pessoas tem
tentado alterar as identificações e escapar, ultimamente – outro pedestre
comentou, quase parecendo assustado – Geralmente eles são pegos e
‘rearranjados’, ou re-educados. Nem sequer pense em tentar escapar.
E um dos painéis sextavados de
repente se moveu, desaparecendo em pouco tempo dentro da parede. O primeiro
pedestre sacudiu a cabeça em negativa, reprovando.
_ E eles trabalharam tanto...! Se
ele não tivesse criticado o sistema, nada disso teria acontecido. Agora os dois
vão ser re-educados.
Fei sacudiu a cabeça, entre
revoltado e horrorizado. Apesar da evidente modernidade que emanava do lugar,
aquilo era só outro bloco de prisioneiros, idêntico a Nortune. Talvez pior; ao
menos, não havia execuções públicas para controle da população nas ruas de
Kislev.
_ Não devia ter morrido em vão –
outra voz disse, e Fei se voltou assustado, porque parecia tremendamente
familiar. Mas, não podia ser...?
_ T-Timothy?
_ Não, o nome é Samson – o homem
que lembrava seu amigo morto em Lahan respondeu – Mas, ei, eu te conheço! Do
Torneio em Aveh...! Infelizmente, eu perdi na primeira rodada. Desmaiei no
caminho de casa...
_ E...?
_ Quando dei por mim, já estava
aqui. Todos os outros foram o que chamam de ‘rearranjados’. É uma mistura entre
lavagem cerebral e amnésia. Mas fizeram alguma bobagem na minha vez, acho,
porque ainda consigo me lembrar.
_ Então... O que houve com aquela
pessoa de agora há pouco...?
_ É, ele também – Samson baixou a
cabeça – Morreu em vão... Um dos meus poucos amigos, também. Eu não vou sair
daquele jeito. Sabe aquela torre de guarda ali, perto de nós? Eu vou passar por
ela até o bloco de Segunda Classe, então vou invadir o porto naval e dar
tchauzinho pra sempre pra Solaris.
_ É possível se fazer isso?
_ É sim, porque eu consegui um
passe – Samson mostrou o cartão – Me colocaram pra trabalhar no porto naval. Só
tenho permissão de sair no meu turno, mas já ‘resolvi’ esse probleminha. E, que
tal? Você pode vir junto! Com a sua força, estamos fora!
Na verdade, Fei não tinha planos
de sair de Solaris ainda; mal chegara, e não cumprira sua missão. Mas,
alcançando o porto no bloco da Segunda Classe, poderia ajudar o rapaz a escapar
e ainda procuraria por Citan e Elly.
_ Tudo bem, eu concordo.
_ Isso aí, esse é o espírito! Mas
– e falou baixo, procurando ao redor – é melhor tomar cuidado! Uma garota da
Gebler acabou de passar por aqui por alguma razão.
_ Gebler?! – Fei olhou ao redor –
E, ela por acaso tinha cabelo ruivo?
_ É, essa aí mesmo!! O quê –
olhou desconfiado para Fei – vocês são amigos, por acaso? Falar nisso, ela
estava mesmo procurando por alguém... Ela ainda deve estar por aí em algum
lugar. Devia ir procurar.
Agradecendo e tomando o rumo
indicado por Samson, Fei acabou descobrindo que as plataformas flutuantes
serviam como elevadores particulares, cada uma conduzindo a um nicho diferente
entre os painéis sextavados. E após de experimentar alguns deles, encontrou-se
com Elly no compartimento 10-1-1.
_ Elly!
_ Fei! Ah, Fei, você é tão
descuidado! Se está tentando se infiltrar na base, você tem que ser sutil!
_ Desculpe... Bem, onde nós
estamos?
_ Estamos no ‘Bloco F da Terceira
Classe’ de Solaris – Elly explicou, mostrando uma tela holográfica de
computador – Existem por volta de vinte blocos de cada, com habitantes da terra
morando neles. Nós Solarianos estamos a par de toda a informação pessoal... A
estrutura de DNA de todos é registrada a nível molecular. E mesmo a classe
deles... Sabe do quê esses cidadãos são chamados?
_ Não...
_ ‘Abelhas Operárias’ – Elly
voltou-se para Fei – Por causa da forma dos blocos de habitação deles. Essas
pessoas fornecem o trabalho manual vital para o centro de apoio de Solaris. Fiz
uma viagem de campo para cá uma vez, há muito tempo. Eu lembro de pensar que as
vidas deles não tinham nada a ver comigo. Nunca pensei que eu terminaria aqui,
desse jeito...
_ Então, isso quer dizer que você
deve saber para onde ir daqui, Elly.
_ Vagamente – ela acenou com a
cabeça – Precisamos escapar primeiro.
_ Ah, e por falar nisso, onde foi
parar o Doc?
_ Ele entrou num casulo diferente
pra procurar você. Deve ter ido parar em um bloco diferente.
_ Droga... Estamos todos
separados.
E por culpa sua, ele se recriminou.
Depois de criticar tanto a impulsividade de Bart, agira igualzinho ao amigo. E
aquele não era um lugar para que cometessem enganos. Mas Elly não parecia muito
abalada.
_ Eu não me preocuparia com
Citan. Ele conhece esta cidade melhor do que eu.
_ Me pergunto se Bart e os outros
conseguiram?
_ Jessie está com eles, então
acho que devem estar bem. Seja como for, vamos andando. Precisamos encontrar
uma forma de sair desse bloco.
_ Eu acho que já encontrei, na
verdade.
E Fei contou a ela sobre seu
encontro com Samson e o que o outro dissera, conseguindo um olhar de aprovação
de Elly.
_ Muito bom, Fei! Sim, deve ser
mais simples nos movermos a partir da Segunda Classe. E onde encontramos essa
pessoa?
_ Ele disse que estaria esperando
próximo à torre de vigilância. Vamos.
Os dois dirigiram-se à torre de
vigilância e, passada a surpresa de Samson ao ver a ‘garota da Gebler’ com o
campeão do Torneio de Aveh, ele os conduziu para dentro. Uma vez fechada a
porta, ele disse:
_ Daqui por diante, é melhor se
nos dividirmos. É um labirinto, então tenham cuidado.
_ Certo, você também.
Samson deu-lhes polegar erguido e
avançou primeiro. Depois de darem uma curta dianteira a ele, Elly e Fei
seguiram.
A descrição de Samson não poderia
ter sido melhor. Um labirinto, de fato, e Elly alertou Fei para os sistemas de
segurança. Drones vasculhavam cada corredor, e eles apenas podiam avançar
quando a passagem ficava livre. Depois de alguns minutos tensos esquivando-se
pelos corredores e junções, chegaram ao ponto de checagem adiante do labirinto,
reunindo-se a Samson, que sorriu.
_ Nada mal. Acho que vou eu mesmo
à frente, daqui.
_ Espere! Você não é um Gazel! –
Elly alertou – O que vai fazer?
_ Sem problema. Eu usei
tecnologia marginal pra reescrever minha ID. Fique só olhando.
Elly estava temerosa do que podia
acontecer, Fei percebeu sem entender, enquanto Samson subia no que parecia
apenas uma esteira de bagagens com lâmpadas fluorescentes no piso. Os scanners
fizeram a leitura e a voz do computador seguiu:
_ ... Leitura de ID... Incorreta.
Eliminar.
Não houve tempo para que fizessem
coisa alguma, nem mesmo para Samson recuar. Feixes de laser o desintegraram
onde estava e, passado o choque do primeiro momento, Fei ergueu os punhos.
_ Maldita máquina... Eu vou
acabar com você!
_ Não! Vai ser inútil fazer isso
– Elly o deteve – Você não vai conseguir atravessar sem ter ou uma ID de
Cidadão de Primeira Classe ou uma ID militar.
_ Então, o que vamos fazer?
_ Bom, não podemos simplesmente
ficar parados aqui... Acho que vai ter que ser tudo ou nada.
_ Se não funcionar... nos
preocupamos com isso mais tarde. É o que você está dizendo? – ele deu um
sorriso fraco – Isso parece algo que o Bart diria.
_ Ai, que grosseiro – Elly
pareceu emburrada – Não é como se eu sempre fizesse as coisas sem um plano.
Acho que precisamos passar os dois juntos, ao mesmo tempo. Isso deve enganar os
sensores.
_ Espera um pouco, como assim ‘os
dois juntos’? Dá pra fazer isso?
_ S-sim, eu acho – Elly parecia
um tanto sem jeito – Se nós... passarmos ao mesmo tempo, bem próximos um do
outro, os sensores provavelmente só vão detectar a mim.
Fei olhou significativamente para
a máquina. Se acabassem desintegrados... Bem, ao menos parecia ser rápido.
Tornou a olhar para Elly.
_ Acha mesmo que vai funcionar?
Que vai reconhecer você?
_ S-sim, eu acho...
_ Tá. É o bastante pra mim.
E sem palavra, Fei tomou Elly nos
braços e os dois subiram nos sensores, ela olhando espantada e com as faces
vermelhas enquanto ele próprio olhou para a máquina, parecendo preocupado.
Passado um instante de silêncio, a mensagem da voz metálica se fez ouvir:
_ ... Cidadão de Primeira Classe,
Gazel, confirmada. Por favor, prossiga de modo ordenado.
_ Isso! – Fei exultou – Nós
podemos passar!
Foi quando ele percebeu o rosto
de Elly, a expressão ainda distante e olhando para longe dele, como se
estivesse perdida em pensamentos.
_ Elly? O que foi?
_ ... Hã? Ah, bem... É que,
depois de tudo o que eu fiz, estou surpresa que ainda não tenham me rotulado
como traidora.
_ ... Você acha que eles ainda
não relataram isso? Para a Gebler, isso seria como admitir uma falha; não acho
que quisessem isso.
_ ... Espero que sim.
_ Certo! Então, vamos andando!
Seguiram adiante, subindo pelo
elevador da torre de guarda e saindo enfim num salão circular, onde um guarda
na porta os deteve.
_ Ei! Por que estão saindo por
aí? Venham pra cá!
Antes sequer que Fei pudesse se
preocupar, Elly tomou a frente e retrucou, com atitude:
_ ‘Eu sou uma tenente das Forças
Imperiais Especiais, Elhaym Van Houten. Acabei de completar a coleta da leva
especial do nível de Terceira Classe. Estou agora no processo de levar este
habitante da superfície ao Q.G. Algum problema com isso?’
Fei não compreendera a conversa
em solariano, mas era evidente pela atitude do guarda e a de Elly que ela usara
sua autoridade de oficial da Gebler para que passassem. Era fácil imaginar que,
mesmo em Solaris, não deviam haver muitos dispostos a criar problemas com a
Gebler. As outras pessoas ao redor tinham um ar de superioridade do qual Fei
não gostou, e achou que talvez fosse melhor não entender o que estavam dizendo.
Imaginou se eles já saberiam que seus Portões tinham sido destruídos, e não
eram mais tão inatingíveis quanto de costume.
Saíram no que parecia uma praça
central repleta de acessos e escadarias para pisos superiores e inferiores. Não
parecia ser algo novo para Elly, mas Fei estava muito admirado com tudo. Até
onde sua visão podia alcançar, o piso era metálico, repleto de luzes e com
mostradores holográficos de notícias. As pessoas tinham um ar saudável e roupas
de qualidade e sobriedade, mas por uma estranha razão, ele sentia que havia
algo de errado. A vida parecia perfeita para os habitantes de Solaris; perfeita
até demais.
_ Artificial – ele murmurou,
fazendo com que Elly se voltasse – O padrão de vida daqui... Tudo parece tão
correto, tão ordenado... Não parece um lugar onde pessoas de verdade vivam.
E então Fei pareceu dar-se conta
de Elly, olhando para ele com aquele ar de estranheza, e desculpou-se:
_ Ah... Perdão, Elly. E-eu...
acho que estava pensando em voz alta.
_ ... Está tudo bem. Eu sei o que
quer dizer – e ela acenou em afirmação enquanto ele parecia surpreso – Nasci e
me criei em Solaris, então isso deveria ser muito natural pra mim, e a vida na
terra lá embaixo deveria ser estranha... mas, por alguma razão que não sei explicar,
o que senti ao ver a vida na superfície foi alívio. Era como se, finalmente...
eu estivesse vendo a vida real de pessoas reais. Por isso me pareceu tão
estranho ouvir você dizer isso; acho que nunca parei para pensar em como outras
pessoas viam Solaris.
_ Elly...
E então perceberam uma comoção
próxima; ao lado de um elevador entre os pisos, um guarda em trajes negros
estava barrando o avanço de outros cidadãos.
_ Sinto muito, mas sem acesso
especial, ninguém pode seguir. Estes são lugares especiais para a cerimônia de
dedicação.
_ ‘Cerimônia de dedicação’ – Elly
murmurou ao lado de Fei – Solaris provavelmente não está indo tão bem agora.
_ Hã? – Fei olhou ao redor sem
entender – Por que temos que assistir isso? Decidimos que íamos encontrar com
todos os outros. Não temos tempo pra ir a esse festival.
_ Não é um festival comum. As
pessoas estão perturbadas com a destruição do Portão. A dedicação provavelmente
é para acalmar as massas. Precisamos checar a postura de Solaris quanto a
habitantes da terra. Temos que assistir à cerimônia, Fei.
Havia muita movimentação ao redor
da praça central. Não foi difícil para Fei notar que as pessoas, de fato,
pareciam inquietas, como Elly dissera. Mal pareciam olhar ao redor enquanto
naves imensas se posicionavam no céu claro sobre eles, um teto de cristal
translúcido mostrando o topo da imensa estrutura que era Solaris com suas
várias hastes estendendo-se em todas as direções. Num ponto mais alto sobre a
praça havia um brasão, o símbolo de Solaris que Fei já vira em naves e
uniformes da Gebler. De lá, numa imagem ampliada em várias vezes por
holoprojetores, foi possível ver um trono erguer-se com uma figura de expressão
mumificada em um longo manto vermelho. A presença do Imperador Cain deu início
a um coro de saudação, ao qual o rapaz não se uniu. Sentira ao mesmo tempo
admiração e um medo instintivo ao ver aquela figura de feições de esqueleto,
cuja voz foi irradiada pela praça:
_ Meus amados filhos, vocês podem
ficar em paz. O Ministério Gazel e eu planejamos a destruição do Portão há
muito tempo atrás.
“As pessoas escolhidas por
Deus... Nós, os Gazel, retornaremos ao paraíso de Deus. Para a deusa mãe
adormecida. O tempo de nossa imortalidade chegou”.
“Nós abrimos a porta para
‘Mahanon’... O local onde Deus descansa, a fonte de sabedoria e poder. Os
habitantes da superfície sem dúvida usarão esta oportunidade para dominar seu
poder. No entanto, não há necessidade alguma de preocupação... Desde que
Solaris tenha esse poder...”
E sua voz ficou mais alta e
poderosa, cobrindo o coro de aclamação por um instante, e a praça inteira
pareceu estremecer.
_ Vamos mostrar a essas feras
estúpidas, os Cordeiros, nosso verdadeiro poder!
As naves no céu começaram a
disparar fogos de artifício enquanto o azul cristalino pareceu escurecer, e Fei
precisou de um instante a mais para perceber que aquilo devia ser um efeito
artificial produzido no cristal do teto. Voltando-se, ele reparou nas
expressões vidradas das pessoas à sua volta e, mais perturbador, de Elly
também.
_ Elly...? Ei, Elly!
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