(...)
E ela correra então, passando
pelos guardas que não podiam se mover, saindo pela porta da frente, pelos
portões da mansão e correndo, correndo para longe, temendo o que aconteceria
com sua família. Mesmo então, diante de Fei e Citan, ela continuava aflita com
os destinos deles.
_ Pai, mãe...
_ Elly – Fei colocou sua mão
sobre o ombro dela, enquanto Citan ponderava sobre o que tinha ouvido.
_ O ‘Ministério’...
_ ‘Ministério’? – Elly voltou-se
depressa para Citan – Papai também falou disso! O que tem o Ministério!?
_ ... Vocês descobrirão no tempo
devido – Citan respondeu evasivamente, e Elly não pôde insistir no assunto
porque Fei fez menção de se afastar.
_ Vamos! Temos que voltar e
salvá-los!
_ Não podemos! – Elly balançou a
cabeça – Se você for agora, vão prender você, também. Meus pais vão ficar bem.
O registro militar deles deve protegê-los. E... se for necessário, eu mesma me
entrego depois que todos forem salvos, e isso deve resolver tudo.
_ Mas... – Fei tentou discutir,
mas Elly tornou a negar com a cabeça.
_ Vamos logo. Algo pode acontecer
a eles enquanto estamos só conversando aqui.
Fei olhou para Citan pedindo
apoio, enquanto Elly dava a ele o cartão de acesso, e também o doutor baixou os
olhos.
_ Estou preocupado com a família
de Elly, mas... seu pai arriscou a vida para nos conseguir este cartão. Nós
devemos prosseguir!
Elly voltou-se para Fei, e ambos
concordaram com um aceno solene de cabeça. Ele tinha suas próprias idéias,
claro, e não permitiria que ela se entregasse, simplesmente, quando todos
estivessem salvos. Tinha que haver uma outra maneira, e ele iria encontrá-la.
Mas era preciso que cuidassem da tarefa diante deles primeiro.
_ Mas, neste lugar imundo? Me
poupem! – Citan resmungou, olhando ao redor para a área de despejo – O que eu
não daria pela minha velha banheira agora! Não concorda, Fei?
Elly e Fei olharam um para o
outro, lembraram do chuveiro no quarto dela e, diante do ar confuso de Citan,
riram. Aquilo servira para quebrar a tensão antes de agirem.
Através do duto a vácuo, numa
experiência que lembrou a Fei a viagem expressa pela caverna submarina, os três
chegaram ao interior do sistema de despejo do Palácio, onde um duto secundário
trazia o lixo da área superior para ser eliminado e lançado no mesmo tubo por
onde tinham entrado.
_ Mas, para alcançar a passagem –
Citan apontou, mostrando a porta da qual necessitavam – teremos que passar pelo
triturador.
_ E como propõe que façamos isso?
– Elly olhou com desconforto para as hélices que giravam, e Fei pediu:
_ Se afastem um pouco, acho que
eu já sei...
Ele estava empurrando um pedaço
de módulo até a beirada do poço. Depois, recuou alguns passos e lançou um Tiro
Guiado contra o fragmento, derrubando-o sobre as pás da hélice e detendo o
movimento delas com o som alto de metal se despedaçando e estilhaços voando no
primeiro instante. E Citan inclinou-se sobre a borda, olhando com apreciação.
_ Nada mal, Fei. De fato, algo
maior ou mais pesado pode emperrar o mecanismo... mas, é conveniente que nos
apressemos. O defeito deve ser detectado logo, e equipes de manutenção virão
verificar. Venham, acredito que aquela escotilha esteja aberta para nós agora.
Os corredores estavam tranquilos,
e embora o trio deparasse com alguns grupos menores de segurança, com drones de
defesa ou com grupos de segurança acompanhados de drones de defesa, não era
nada que a força conjunta dos três não pudesse resolver. E chegaram a um
depósito amplo onde Fei encontrou containers de aparência familiar, e descobriu
comida enlatada no interior deles.
_ Bem na hora! – Fei sorriu,
mostrando aos amigos o que encontrara – Parando pra pensar nisso, não como nada
desde que chegamos a Solaris. Vamos fazer uma boquinha.
_ É, acho que tem razão – Elly
sorriu – Não sabemos o que vai acontecer, então não devemos ser exigentes
demais. Citan?
_ ... Não, eu estou bem, obrigado
– o catedrático estava olhando para os enlatados com uma expressão estranha –
E, se aceitam uma sugestão, acho que deveriam conter seu apetite por mais algum
tempo.
_ Acha que pode estar drogada, ou
coisa assim? – Elly olhou ao redor sem compreender – Esse é o tipo de alimento
servido aos cidadãos de Terceira...
_ Apenas confiem em mim por
enquanto. Vamos, acredito que o centro de produção seja nesta direção...
Citan os conduziu rumo a uma
linha de produção onde uma esteira rolante transportava diversas latas de
alimentos na direção oposta à que eles vinham. Detendo-se sobre a passarela que
levava para além da esteira, Fei admirou as latas perfeitamente posicionadas
que desciam.
_ Isso... É a comida que deixamos
pra trás agora...?
_ Entendo... – Elly ponderou,
olhando ao largo – Os medicamentos que normalmente usamos são produzidos aqui.
_ Para prosseguir, devemos
desabilitar os sensores de objetos estranhos – Citan mostrou o que pareciam
anéis metálicos montados ao redor das esteiras em intervalos regulares de
espaço – Caso contrário, os sistemas automáticos devem nos remover sempre que
tentarmos avançar. O processo é inofensivo, mas ficaremos presos aqui.
_ Eu fico imaginando... – Elly
olhou curiosa para a carne que podiam ver sendo processada ao longo da esteira
– Que espécie de carne é essa...?
_ Agh, eu não – Fei balançou a
cabeça – Não quero ver onde fazem isso.
_ Espere, Fei.
Fei deteve-se, ele e Elly olhando
para a expressão séria de Citan, que mostrou uma porta mais adiante.
_ É por ali que sairemos desta
área. E, lembrem-se os dois, vocês pretendiam comer aquela comida. Considerem
esse fato quando passarmos por aquela porta.
_ Não entendo – Elly perguntou –
O que tem de mais na comida enlatada?
_ O que ela é...? O que... Afinal,
o que tem lá?
_ Vejam por si mesmos – Citan
respondeu, tomando o rumo da central de controle para desativar os sensores de
objetos estranhos.
Com o sistema desativado, eles
puderam passar adiante correndo sobre as esteiras rolantes até a porta que
Citan mostrara. Fei e Elly olharam para o doutor com a pergunta em seus rostos,
mas o mais velho meramente acenou. Deviam seguir em frente.
E em frente seguiram, até alcançarem
o estágio anterior das esteiras rolantes, de onde a carne saía antes de ser
enviada para as latas. De estágios primários e esteiras mais acima, eles viram
diferentes Wels mortos caindo sobre moedores que os despejavam nas colunas
seguintes, onde apenas os bolos de carne que restavam seguiam para o estágio de
enlatados.
_ Não...!!! – Elly cobriu a boca
com as mãos, desviando os olhos com ar horrorizado, e Fei apertou os punhos com
raiva, voltando-se para perguntar a Citan o que ele no fundo já compreendera.
_ O que... é isso...?! O que...
diabos é isso...!! Uooooooooohhhhh!!!
Flashes brancos passaram por seus
olhos, e ele acreditou ver uma mulher, uma pessoa que lhe era familiar,
observando através de uma tela de vidro com olhos indiferentes. Havia alguém
deitado sobre um leito de pesquisa, mas a imagem passou depressa demais para
que ele compreendesse ou sequer retivesse as feições em sua mente e, quando deu
por si próprio, ele também estava caído de joelhos como Elly, diante de Citan.
E o doutor, rosto baixo e sem olhar diretamente para eles, acenou com a cabeça.
_ Sistema Soylent. O laboratório
de experiências com organismos, e sua instalação de eliminação em Solaris. E...
a instalação produtora de comida e remédios para manter o selo do Limitador. Os
Ceifadores Wels de Aquvy também foram feitos aqui.
A comida distribuída pelo
‘Ethos’... Os remédios que chegavam à superfície... Os Ceifadores que tinham
enfrentado durante a queda do ‘Ethos’... De certa forma, eram todos um só
produto e subproduto. Fei e Elly não disseram palavra, ouvindo o som
ininterrupto dos moedores quando novos Wels caíam neles, e Citan perguntou:
_ Elly, você se lembra das
palavras de Dominia durante nossa infiltração de Shevat? Esta é a resposta.
Pessoas da terra natal dela serviram como uma das origens dos Wels... O plano
M. Foram utilizados dessa maneira por causa de suas habilidades peculiares. Ela
é a última sobrevivente. E... seu pai, Erich, costumava ser o superintendente
dessa instalação. Ele estava envolvido na pesquisa com o pai de Maria.
_ Não seja ridículo! – Elly
retrucou, se pondo de pé – Meu pai nunca tomaria parte numa coisa dessas!
_ Naturalmente, Erich sempre teve
lapsos de culpa – Citan continuava de cabeça baixa – Por isso, ele manteve
tantos habitantes da superfície quanto possível sob sua proteção como cidadãos
de Terceira Classe. Até que se demitiu. É por isso que ele está na equipe
administrativa das Forças Especiais agora.
_ Meu pai... fazia isso...? Não –
Elly cobriu os olhos, sacudindo a cabeça – Isso não pode ser verdade...
_ Agora, levante-se Fei – Citan
voltou-se para o rapaz, ainda prostrado – Levante-se, e observe.
Fei ficou de pé sem de fato
pensar no que estava fazendo, mas o tremor de suas mãos traía o que estava
sentindo. E Citan percebeu que ele estava se apoiando na amurada para não
desabar novamente, o rosto deixando clara a repulsa ao que via.
_ Isso... Como isso pode ser...
Doc...
_ ... Isso é a realidade. Agora,
devemos seguir.
Fei e Elly, quase mecanicamente,
passaram pela passarela que se estendia sobre as esteiras e deixaram aquele
compartimento, sem fazer qualquer questão de olhar para a máquina. Citan, no
entanto, deteve-se ainda um instante para olhar com tristeza e contemplação
para o mecanismo e os Wels que caíam.
_ Acabar com a vida de uma pessoa, e então consumir
sua carne. Isso é... aceitável...?
WE CAN RUN TO THE END OF THE WORLD
Nenhum comentário:
Postar um comentário