Capítulo 43: O Laboratório de Krelian
Através de uma porta lateral da
usina do Sistema Soylent, Fei, Elly e Citan acessaram instalações repletas de
painéis holográficos e portas de luz sólida que lhes barraram passagem
imediata, mesmo através do cartão de Erich, para grande surpresa de Elly.
_ Não entendo... Deveríamos poder
ultrapassar qualquer tranca com isto.
_ Acredito que estejamos nas
dependências do laboratório pessoal de Krelian – Citan olhou ao redor,
pensativo – Não é de se estranhar que não funcione.
_ Como assim, Doc?
_ Krelian é um homem muito
reservado, e de muitos inimigos dentro e fora do Palácio – Citan os conduziu
por uma porta lateral – É mais do que natural que tenha seus segredos, e meios
específicos de protegê-los. Venham, creio que podemos avançar nesta direção, ou
ao menos encontrar uma forma de burlar as trancas de segurança das portas de
luz.
Os corredores pareciam apenas
semi-iluminados através do caminho escolhido por Citan, mas ao menos havia
poucos guardas por ali; na maioria, drones de segurança. Como o doutor dissera,
Krelian não parecia confiar em seres humanos para proteger seu trabalho. E
chamou a atenção de Fei encontrar mais de uma sala conjugada onde uma janela
espessa de vidro mostrava uma mesa de operações na área vizinha, o que lhe
trazia uma sensação perturbadora de familiaridade. O que era, ele não tinha
idéia, mas ficou mais do que grato quando se afastaram pelo corredor, com Citan
conduzindo-os até um salão maior, semelhante a um depósito. E, lá dentro...
_ Wels...!
_ Obviamente, Krelian ainda não
terminou seus experimentos com estes – Citan olhou ao redor, as lentes dos
óculos cintilando ao se voltar para as jaulas trancadas – Estão em estágio de
mutação, não totalmente desenvolvidos ao que parece.
_ Ô! Há quanto tempo!
Os três se detiveram. Entre as
celas fechadas do laboratório, um homem de aparência inofensiva olhava para Fei
com um sorriso, e ao perceber que ele não o reconhecia, bateu no próprio peito
e enfatizou.
_ Sou eu, lembra? Aquele cara que
tinha um cachorro lá, em Kislev. Pois é... Olha pra mim agora... Mas o cão está
indo bem.
Nesse momento, Fei percebeu que
os experimentos nele tinham deixado sua pele verde e com estranhas brotoejas.
Parecendo notar algo na atitude de Fei, ele pediu:
_ ... Por favor, nem pense em me
deixar sair... – mostrou as celas ao redor, com as outras criaturas – Mesmo que
ainda esteja consciente... Eventualmente... eu vou...
_ Ele pode ter razão – Citan
abanou a cabeça tristemente – Por mais desumano que isso pareça... Fei?
O rapaz já estava digitando o
painel ao lado da cela, sacudindo furiosamente a cabeça. Já tivera que tolerar
demais daquilo: pessoas sendo transformadas em monstros, e então sendo
eliminadas e transformadas em comida, remédios e bens de consumo como se fossem
gado...! Ele talvez não pudesse reverter o que fora feito, mas ia levar aquele
homem ao responsável pelo laboratório e fazê-lo ser curado, pouco importando o
que fosse necessário para isso.
Diferente de Citan, no entanto,
Fei não tinha habilidade ou sorte com trancas eletrônicas, e ele acabou
deixando sua frustração extravasar na forma de um Raijin bem colocado que
explodiu a tranca, causou um curto-circuito e abriu o fecho da cela.
_ V-você abriu...! – o homem de
Kislev balbuciou, recuando devagar e de costas, como se temesse sair da cela –
E-eu disse a você para não... Hã...
Citan se colocou em guarda, Elly
preparou seu bastão e Fei não compreendeu enquanto o homem apertava a própria
cabeça entre as mãos, sacudindo-a para um lado e outro de olhos baixos e ainda
murmurando:
_ M-minha... mente... Men? M-men, men, me me m...
Um rugido alto, e seu corpo
inchou até que ele assumiu a forma de um ‘Órfão’, um monstro de pele clara e
braços descomunais, sem pernas, que avançou sobre o trio. E não estava sozinho.
_ Uma atitude nada inteligente,
Fei – bronqueou Citan, voltando sua atenção para o oposto da sala, onde outras
celas também tinham se aberto – Você danificou o sistema de tranca, e não de
uma única cela!
Elly afastou-se à esquerda de
Fei, voltando-se por onde eles tinham vindo. Quatro Wels semelhantes a múmias
enroladas com descuido estavam correndo em sua direção. À sua direita, Citan
avançou sobre um segundo Órfão, deixando que Fei lidasse com o primeiro.
A criatura tinha uma força
absurda dos músculos grotescamente inchados, e apesar de ter conseguido se
livrar do agarrão pisando na cabeça do Órfão, Fei sentiu a cabeça leve demais e
tombou ao chão depois do salto. Fraqueza nas pernas e nos braços, sentiu, e o
monstro estava se arrastando sobre ele novamente.
Fei se posicionou, ainda
hesitando. Não havia nada de humano na criatura naquele momento, ele morreria
se fosse pego novamente... E, no entanto, não era fácil tomar a decisão.
_ Koho!
Seu primeiro soco deteve o Órfão
e, ao mesmo tempo, o impulsionou para trás num giro, dando a Fei espaço para
tornar a atacar. E num movimento veloz, atingiu o corpo grotesco e inchado com
os punhos para encerrar a técnica com um chute bem colocado.
E o Órfão vacilou, recuando
diante da força da técnica. Mas longe de se dar por vencido, ele abriu o braço
esquerdo e obrigou Fei a usar os dois braços para conseguir bloquear o primeiro
golpe, ficando totalmente desprotegido contra o segundo.
Novamente o monstro o agarrara, e
Fei podia sentir as forças a escaparem de si uma segunda vez. Sua visão estava
ficando turva e não encontrava posição para chutar novamente, nem tinha certeza
de que teria forças para se libertar se o fizesse.
_ Fei!
Uma explosão alta o despertou e,
para sua surpresa, viu que o Órfão o largara. Elly já enfrentara os Wels tipo
múmia quando partira com Billy e Rico para resgatar o navio fantasma do ‘Ethos’
em Aquvy, e sabia que eles explodiam a si mesmos como ataque. Então, derrotara
a dois deles mantendo a distância, explodira um terceiro usando o Thermo Dragão
e, ao ver Fei em dificuldades, aproveitou-se do ataque do último e lançou-o
contra o Órfão, fazendo-o soltar sua presa. E os dois ouviram a voz de Citan
gritar:
_ Saiam do caminho! Vendaval!
Citan obviamente já derrotara seu
próprio monstro, e Elly e Fei puderam ver como fora. Recuando a mão direita
aberta, o doutor pareceu concentrar vento e relâmpagos em sua palma por um
segundo antes de estendê-la na direção do Órfão e liberar o que parecia uma
pequena tempestade elétrica contra a criatura, que voou na direção da parede
oposta e a atingiu pesadamente, tombando e sem tornar a atacar. Citan
aproximou-se imperiosamente, passando pelos surpresos Fei e Elly e indo até o
monstro, explicando:
_ Órfãos são monstros que drenam
energia; a melhor maneira de combatê-los é manter distância. Mas, como a
transformação se deu agora...
_ Me... Meu cachorro, por
favor... – a criatura murmurou, vazando líquidos esverdeados – Tomem conta
dele...
_ Entendeu agora, Fei? – Citan
perguntou, ofegante e também severo – Não importa o quanto esteja indignado,
não importa o quanto queira, você não pode salvá-los! Aja desta maneira
outra vez, e pode estar condenando todos nós ao mesmo destino, ou algo pior. E
não apenas a Elly e a mim, mas também aos outros que pretende resgatar!
_ E-eu... sei, Doc – Fei
respondeu, de voz e cabeça baixa – Me perdoem, vocês dois, isso... Não vou
fazer de novo.
_ Fei...
Elly também ficara aborrecida com
a impulsividade nos atos de Fei, mas não tinha como não sentir pena dele agora,
depois da bronca de Citan. Mais do que a consciência do risco ao qual expusera
os amigos, ele também percebera que não teria como ajudar aquelas pessoas.
Mesmo pondo um fim ao laboratório, tinham chegado tarde demais para os que já
se encontravam ali. Sem qualquer outra palavra, o rapaz seguiu adiante.
_ Vamos – Citan acenou, quando
Fei saíra da sala – Não podemos deixá-lo sozinho.
Elly olhou com alguma estranheza
para Citan antes de também segui-lo. Talvez a rudeza fosse necessária para que
Fei se conscientizasse do risco que estavam correndo, mas... parecia haver algo
de errado com o doutor.
A sensação incômoda continuou com
Elly enquanto eles seguiam adiante. Havia drones de segurança, alguns poucos
guardas e portas com combinações sonoras a serem destrancadas, mas toda a
atividade não lhe tirava a impressão de que algo não estava como devia ser. E
por fim, depois do que pareceram horas andando por toda Solaris, o trio
encontrou um equipamento curioso numa sala paralela.
_ Que lugar é esse?
Diante de Fei estava uma espécie
de projetor holográfico dividido em três bancadas distintas, cada uma mostrando
um trio de figuras holográficas. Fei, Elly e Citan em uma delas. Bart, Billy e
Rico numa segunda. Emeralda, Chu-Chu e Maria na terceira.
_ Hologramas... Nossos...?! –
Elly levou as mãos à boca enquanto olhava para as figuras.
_ Por que há hologramas nossos
numa área de Solaris? – Fei voltou-se para Citan, esperando pela costumeira explicação.
_ Acredito que isso é um banco de
dados tomado sobre nós através da análise do Cubo de Memória... – Citan olhou
com algum interesse para seu próprio ‘eu’ holográfico. Acessando a informação
por meio de um botão sob a holografia de Fei, ele colocou a imagem do rapaz no
projetor central, ampliada, e com informações variadas listadas diante dela:
Fei – Número dos Cordeiros, 001589750.
Fei Fong Wong
Resposta de Ether – Infinita
Alinhamento Anima – Infinito
Comentários: Contato
Eliminação imediata desejada.
_
‘Contato’? – Fei franziu o rosto, e Elly avançou para acessar seus próprios
dados:
Elly – Número do Ministério, 6920188.
Elhaym Van Houten
Resposta de Ether – Infinita
Alinhamento Anima – Infinito
Comentários: Possível Antitipo
Aprovação para recuperação e
análise necessária concedida.
_ O que
querem dizer com ‘Antitipo’? – Elly perguntou, mas Citan acenou com a cabeça e
voltou-se para a porta.
_ É natural que se pesquise sobre
os inimigos. Vamos, estamos perdendo nosso tempo.
Após um instante de dúvida, Fei
deu de ombros e seguiu Citan, e Elly veio depois dele, ainda olhando com
estranheza para o doutor. Aquilo não era do feitio de Citan; ele geralmente
ficava intrigado ou passava algum tempo ponderando sobre tudo o que fosse
incomum entre o que achavam. Seria apenas tensão ou urgência com a situação
presente?
Seguindo pelo corredor, logo após
a sala holográfica, o trio deparou com uma nova comporta selada semelhante à
porta de tranca sonora que tinham ultrapassado pouco antes.
_ E agora, o quê? – Fei
perguntou, tentando inutilmente abrir passagem – Esta aqui também não abre.
Elly fez menção de dizer algo,
mas Citan revelou na parede da direita um painel oculto, digitou uma sequência
de números e a porta se abriu sem qualquer mistério. E ele acenou com a cabeça.
_ Por aqui.
Para Fei, já era comum que Citan
parecesse capaz de abrir qualquer tranca, mas Elly deteve-se um pouco antes de
começar a seguí-los.
“O quê...? Esse era o código de
desativação da tranca...?”
_ Doc, espere...
Elly alcançara Fei, e Citan se
detivera a alguns passos deles, sem se voltar. Alguma coisa estava errada, Elly
percebeu, tendo um pressentimento estranho, enquanto Fei perguntava:
_ Para quê serve essa instalação?
Hesitando por um instante, Citan
voltou-se para os dois com o ar reflexivo de sempre, mão sob o queixo e olhos
baixos, respondendo:
_ Este lugar não deveria ter sido
visto desde a origem do tempo. Esta instalação se concentra nos experimentos de
longevidade do Imperador e do Ministério.
_ A origem do tempo?
_ Sim – Citan respondeu
solenemente à expressão confusa de Fei – Dez mil anos atrás. Seres chamados de
humanos nasceram aqui. Os primeiros foram o Imperador e os anciões do
Ministério.
_ Como poderia um humano... viver
dez mil anos...?
_ Agora apenas o Imperador resta
– Citan tornou a baixar os olhos, a mão ainda sob o queixo – Seu destino é
nunca morrer. No entanto, o Ministério é diferente. Uma dia, durante a Invasão
Diabolos... os anciões do Ministério morreram, perdendo seus corpos. Agora, o
Ministério que governa Solaris existe como dados nos bancos de memória. As
personalidades de cada um deles são bits de dados.
_ São os dados do banco de
memória?
_ Sem ter carne ou alma, eles são
apenas números binários – Citan prosseguiu sem expressão, como se Fei não
tivesse perguntado coisa alguma, e então deu-lhes as costas – Eles existem e não
existem ao mesmo tempo. Depois da Queda, querendo ressuscitar seus corpos, e
criar um veículo digno, eles transferiram uma instalação de pesquisa que um dia
foi o Sistema Soylent na terra para Etrenank. Eventualmente, a instalação não
era mais apenas para a vida do Imperador e a ressurreição do Ministério, mas
começou também a produzir comida e drogas com aditivos que controlavam o
público. O cubo de memória que Fei e os outros estavam usando foi criado para
obter dados vivos. Naturalmente, o ‘Ethos’ também enviava dados variados para
ajudar.
Fei lembrou-se por alguma razão
da estranheza que tomara conta de Elly durante a tal cerimônia de dedicação.
Ela se ausentara, tão concentrada no que dizia o Imperador quanto todos os
outros, e parecera ter dificuldades para voltar a si. Seria resultado das
drogas de controle de que o doutor falava?
_ Isso quer dizer que estávamos
vivendo para essas pessoas antigas do Gazel?
_ Sim.
_ Eles estão transferindo e
tomando dados vivos através dos cubos de memória até o Ministério – Elly
perguntou, parecendo chocada – para que eles possam usar isso e ressuscitar
seus corpos?!
_ Exato – e Citan ajeitou os
óculos sobre os olhos.
_ Então, o que quer dizer é que
aqueles mutantes sendo desmontados na fábrica também tinham esse propósito?
_ Basicamente, eles desejam
reutilizar os restos inúteis – Citan respondeu, e Fei meneou a cabeça sem poder
crer.
_ Isso é horrível... Como eles
puderam...?
_ Espera um pouco, Fei – Elly
afastou Fei, olhando diretamente nos olhos de Citan – Alguma coisa não está
certa! Citan, como você sabe disso tudo? Nem mesmo o governo ou o exército
sabem de tanta coisa!
Fei olhou para Elly, seus olhos
azuis cheios de suspeita, olhou para Citan, a expressão indiferente e quase sem
emoção alguma por trás dos óculos reluzentes, para Elly e Citan novamente, sem
compreender.
_ ... O quê?
_ Pensando nisso agora, parece
que fizemos o caminho mais longo para cá de propósito – Elly ponderou – Devia
ter havido uma forma mais rápida de alcançar Bart e os outros. E, além disso, a
rota para chegar a este bloco não pode nem mesmo ser baixada no mapa do
computador. Então, como é que sabíamos em que caminhos estávamos?
_ Hã... Doc... Você também não
descobriu...?
_ Isso é impossível – Elly
explicou – Para começar, aquela partição que tomamos para entrar neste bloco.
Aquele painel era mostrado como sendo uma instalação P4. Mesmo um oficial de
alto nível de Solaris não pode entrar aqui. Acha que iam deixar uma instalação
como esta destrancada e aberta?
_ E você sabia como abrir? – Elly
voltou-se para Citan – Afinal, quem exatamente é você?
_ Ei, espera um minuto – Fei
acenou com a mão – Pode ter sido sorte.
_ Alguma coisa está errada! –
Elly teimou, sempre olhando para a expressão impassível de Citan – Você foi
capaz de penetrar em Solaris sob lei marcial, invadir o palácio, passar por uma
porta nível P4 e até descobrir o propósito da instalação P4... Como isso é
possível?
“Até sobre o meu pai – Elly
baixou os olhos – Tenho certeza de que era possível que você estivesse em
Solaris na época. Mesmo Jessie, que também estava em Solaris então, não sabia
do motivo por trás do Projeto M. Então, Citan, por que você sabe? Você sabe
mais detalhes até do que Maria... Alguma coisa não está certa. Eu sei disso.”
_ Hã... Elly...
_ Eu não terminei! – Elly
retrucou, silenciando Fei e tornando a olhar para Citan – Eu deveria ter
percebido isso antes. Citan... Quem é você?
Fei também se voltou para Citan.
Era estranho, tudo o que Elly dissera, mas ele já se habituara àquilo. Seu
velho amigo sempre parecia saber mais do que todos à sua volta, e sempre tivera
um jeito especial com máquinas; ele não estava nada surpreso que tivessem
chegado até ali, e esperava ver Citan dizer o mesmo a Elly.
Citan não disse coisa alguma a
princípio. Os olhos estavam ocultos pela luz refletida nas lentes dos óculos.
Ele baixou a cabeça, tornou a ajeitá-los...
... e, de algum lugar, um som
metálico se fez ouvir e as luzes se apagaram. Confuso, Fei olhou ao redor.
Nada. Nem Elly, nem Citan, nem coisa alguma. Sequer podia ver a própria mão
diante do rosto.
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