(...)
O Gear branco do Sábio desfez sua
postura de defesa. E os três viram o Sábio, após hesitar por um instante,
remover sua máscara num movimento lento. O rosto revelado era o de um homem de
meia idade, de ar severo e cansado, de cabelos e bigode cinzento e uma bandana
vermelha em sua fronte. E em voz resoluta ele perguntou:
_ O que aconteceu a Fei... Id?!
_ Que pena – o Gear vermelho,
cercado por lava, estava de braços cruzados e parecia caçoar dele – A nova
personalidade de Fei à qual você deu origem, e todo aquele trabalho que a sua
persona fez para torná-lo um, perfeito, inteiro e unificado... pra nada. Ele
vai ser engolido por mim!
_ Eu não vou permitir! – retrucou
Khan – Vou destruir você antes disso!
_ Como se você pudesse... Fracote!
Mamãe morreu por causa da sua conduta covarde! E como resultado, ele fugiu
daquela realidade, mergulhando em suas lembranças! E agora, eu continuo minha
existência suportando todo aquele ódio. Você nunca conseguiria imaginar como
é...!
Citan, Bart e Emeralda perceberam
na voz de Id um momento em que ele soara muito semelhante a Fei, um Fei
frustrado e ferido demais para confiar em quem fosse... E após um instante de
silêncio, entre os rios de lava que corriam à sua volta e à volta de seu filho,
Khan respondeu:
_ Eu não estava simplesmente
trabalhando para unificar a personalidade de Fei, sabia?! Tudo o que você e eu
sentimos... A tristeza, o ódio... Embora ele também tenha experimentado tais
coisas, Fei precisava ser encorajado a crescer por si mesmo, a fim de ser capaz
de compreender tudo isso. Fei deveria ser capaz de compreender todos os seus
sentimentos a essa altura! Mas agora, você quer apagar a pessoa que o
compreende... Matar Fei! O que é que você quer?
_ Por que me perguntar tal coisa
agora? – Id indagou, indiferente – Meu propósito é o mesmo que o dele...
Destruição total! Isso, e apenas isso!
_ Esse mundo é um lugar tão ruim
– Khan perguntou, tristemente – que existe apenas ódio em seu interior?
_ Foram vocês que me fizeram
assim! – esbravejou Id, seu Gear avançando – Você e aquela mulher! Admita!
E seu braço esquerdo começou a
golpear o ar diante do Gear de Khan, e tamanho era o poder de sua revolta que
ondas puras de chi vermelho eram liberadas a cada movimento. Khan imediatamente
se pôs em guarda, mas não podia conter efetivamente toda a energia e seu Gear
foi arrastado irresistivelmente para trás, e era claro para todos que ele não
suportaria tal agressão por muito tempo, e nem os amigos de Fei estavam em
condições de vir ao seu auxílio. Suportando como podia a intensidade dos
ataques seguidos, Khan chamou:
_ Argh...! Fei...!! Consegue me
ouvir? Por favor... Receba este meu punho, repleto de memórias que estou dando
a você!
Protegendo-se agora apenas com o
ombro e o braço esquerdo, o Gear de Khan fechou seu punho direito e o ergueu,
enquanto seu mestre prosseguia murmurando:
_ Torne-se um... Consigo mesmo...
e comigo!
Afastando as ondas de chi como
podia com uma das mãos, o Gear branco de Khan avançou em meio ao ataque,
procurando uma abertura. E a bordo de Heimdall, apressando os reparos de
emergência como podia, Citan chamou:
_ Fei!! Para onde o verdadeiro de
você foi? Lembre-se! Você não ia salvar Elly?
No vazio de sua mente, Fei flutuava à deriva. Não fazia qualquer
movimento, sequer abria seus olhos. Estava entregue como uma folha solta na
maré, flutuando na onda irresistível que eram os sentimentos e impulsos
violentos de seu outro ‘eu’, e agora as coisas começavam a fazer sentido. Ao
menos, ele sentia compreender.
“Sim...
Isso é o interior de Id. Um mundo cheio de ódio e tristeza. É tudo o que existe
aqui. Sim... Agora eu entendo, Id.
Por que você odeia o mundo. Por que não existe nada dentro de você...
Nada... Nada foi dado a você... Privado... de todas as memórias felizes...”
Fei sabia que
estava acabado. Não tinha forças e, agora, sequer a vontade para lutar e
impedir a absorção por parte do outro. E afinal, de que adiantava resistir? Se
havia tão pouco dentro de si mesmo... Se não tinha como mostrar algo melhor...
Talvez Id tivesse razão.
“Ainda
assim... A sensação é agradável... É quase bom... Agora eu entendo...! Não há
necessidade de resistir. Eu, originalmente, fui só uma existência que foi
criada como uma cobertura para esconder Id. Então, seria melhor voltar para
aquele lugar... Vamos juntos... Apagar tudo... Incluindo a nós mesmos...!”
Uma súbita
sensação de consciência o alcançou de repente, uma maré de frio e lucidez em
meio ao calor de seus próprios sentimentos, como se alguém tivesse aberto uma
janela ou ligasse sobre seu rosto uma luz intensa, e uma voz familiar o chamou.
Lembre-se!
Você não ia salvar Elly?
“Elly? É isso
mesmo...! Elly...!”
Seus olhos se
abriram e ao dar conta de si mesmo, Fei deixou de flutuar à deriva. Não podia
deixar terminar ainda. Não estava acabado, e tinha assuntos a concluir.
_ Eu tenho que
salvar Elly!
Repentinamente, ele percebeu não estar mais no vazio
de sua mente. Estava num aposento diferente, fechado, escuro, um recesso
vagamente familiar de sua mente.
“O que é esse lugar...?”
Havia uma tela enorme diante de si, como a tela de
um cinema. O filme sendo exibido, porém, era curto e repetia-se
incessantemente. Um garotinho jogava uma bola para uma mulher adulta,
provavelmente sua mãe. Ela a devolvia, e ele a deixava escapar. Rindo, ele
corria atrás dela...
... e o filme voltava ao momento em que a mãe
recuperava a bola. Sempre a mesma cena, repetida vez após a outra. E Fei
percebeu um garotinho sentado no chão, assistindo. Um garotinho idêntico ao
mostrado no filme, e muito familiar.
_ O que é que ele fez agora?! – veio outra voz por
trás dele – Ele só te chamou aqui pra proveito próprio...
Id estava diante de Fei, parecendo aborrecido e
levemente surpreso. Antes que Fei perguntasse qualquer coisa, ele explicou:
_ Este é o interior da concha da sua personalidade
básica, o quarto do ‘covarde’. Tenho certeza de que você esteve aqui muitas
vezes antes.
_ Entendo... – Fei voltou-se, reconhecendo agora a
cena – Eu me lembro... Em meus sonhos.
_ Tudo o que era desprezado e indesejado, ele
empurrou para mim – Id aproximou-se, olhando com raiva, desagrado e superioridade
para o menino sentado diante da tela, que parecia alheio a tudo o que não fosse
a cena repetida – enquanto ele se trancou em seu próprio mundinho... O Fei
‘covarde’. A base das nossas personalidades.
O menino que, Fei percebia agora, parecia quase
transparente em sua falta de vivência e experiências reais, enfim deu-se conta
de que não estava sozinho e ficou de pé, voltando-se curioso para ele.
_ Quem é você...? Ah, você é meu...
Voltou-se novamente para a tela, como se não fosse
capaz de manter a atenção afastada dela por muito tempo, e puxou Fei pela mão.
_ Ei... Vamos assistir isso juntos! Essa é a minha
coisa mais importante do mundo todo...
_ Hah...! – fez Id – Repetindo vez após a outra os
tempos em que ele vivia cheio de felicidade, ele vive em seu próprio mundinho
feliz.
Id se afastou, dando as costas à tela e conseguindo
a atenção de Fei. Aquela tela o incomodava. Era uma visão de paz e alegria,
sim, mas depois de pouco tempo a repetição continuada a tornava perturbadora de
certo modo; parecia terrível imaginar que a única felicidade que podia
encontrar em seu interior fosse tão pouca. E apesar do desprezo óbvio de Id,
era impossível não notar que ele também invejava o que só o outro podia
assistir.
_ Enquanto eu só continuo vivo por causa do que tem
naqueles restos que ele deixou pra trás. Aqui! – Id voltou-se para Fei de
repente, com uma determinação feroz e rancorosa em seu rosto – Eu vou te
mostrar... ‘Tudo’ sobre mim.
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