sábado, 4 de março de 2017

Capítulo Cinquenta e Oito Ponto Um

(...)

O Gear branco do Sábio desfez sua postura de defesa. E os três viram o Sábio, após hesitar por um instante, remover sua máscara num movimento lento. O rosto revelado era o de um homem de meia idade, de ar severo e cansado, de cabelos e bigode cinzento e uma bandana vermelha em sua fronte. E em voz resoluta ele perguntou:
_ O que aconteceu a Fei... Id?!
_ Que pena – o Gear vermelho, cercado por lava, estava de braços cruzados e parecia caçoar dele – A nova personalidade de Fei à qual você deu origem, e todo aquele trabalho que a sua persona fez para torná-lo um, perfeito, inteiro e unificado... pra nada. Ele vai ser engolido por mim!
_ Eu não vou permitir! – retrucou Khan – Vou destruir você antes disso!
_ Como se você pudesse... Fracote! Mamãe morreu por causa da sua conduta covarde! E como resultado, ele fugiu daquela realidade, mergulhando em suas lembranças! E agora, eu continuo minha existência suportando todo aquele ódio. Você nunca conseguiria imaginar como é...!
Citan, Bart e Emeralda perceberam na voz de Id um momento em que ele soara muito semelhante a Fei, um Fei frustrado e ferido demais para confiar em quem fosse... E após um instante de silêncio, entre os rios de lava que corriam à sua volta e à volta de seu filho, Khan respondeu:
_ Eu não estava simplesmente trabalhando para unificar a personalidade de Fei, sabia?! Tudo o que você e eu sentimos... A tristeza, o ódio... Embora ele também tenha experimentado tais coisas, Fei precisava ser encorajado a crescer por si mesmo, a fim de ser capaz de compreender tudo isso. Fei deveria ser capaz de compreender todos os seus sentimentos a essa altura! Mas agora, você quer apagar a pessoa que o compreende... Matar Fei! O que é que você quer?
_ Por que me perguntar tal coisa agora? – Id indagou, indiferente – Meu propósito é o mesmo que o dele... Destruição total! Isso, e apenas isso!
_ Esse mundo é um lugar tão ruim – Khan perguntou, tristemente – que existe apenas ódio em seu interior?
_ Foram vocês que me fizeram assim! – esbravejou Id, seu Gear avançando – Você e aquela mulher! Admita!
E seu braço esquerdo começou a golpear o ar diante do Gear de Khan, e tamanho era o poder de sua revolta que ondas puras de chi vermelho eram liberadas a cada movimento. Khan imediatamente se pôs em guarda, mas não podia conter efetivamente toda a energia e seu Gear foi arrastado irresistivelmente para trás, e era claro para todos que ele não suportaria tal agressão por muito tempo, e nem os amigos de Fei estavam em condições de vir ao seu auxílio. Suportando como podia a intensidade dos ataques seguidos, Khan chamou:
_ Argh...! Fei...!! Consegue me ouvir? Por favor... Receba este meu punho, repleto de memórias que estou dando a você!
Protegendo-se agora apenas com o ombro e o braço esquerdo, o Gear de Khan fechou seu punho direito e o ergueu, enquanto seu mestre prosseguia murmurando:
_ Torne-se um... Consigo mesmo... e comigo!
Afastando as ondas de chi como podia com uma das mãos, o Gear branco de Khan avançou em meio ao ataque, procurando uma abertura. E a bordo de Heimdall, apressando os reparos de emergência como podia, Citan chamou:
_ Fei!! Para onde o verdadeiro de você foi? Lembre-se! Você não ia salvar Elly?


No vazio de sua mente, Fei flutuava à deriva. Não fazia qualquer movimento, sequer abria seus olhos. Estava entregue como uma folha solta na maré, flutuando na onda irresistível que eram os sentimentos e impulsos violentos de seu outro ‘eu’, e agora as coisas começavam a fazer sentido. Ao menos, ele sentia compreender.

“Sim... Isso é o interior de Id. Um mundo cheio de ódio e tristeza. É tudo o que existe aqui. Sim... Agora eu entendo, Id.

Por que você odeia o mundo. Por que não existe nada dentro de você... Nada... Nada foi dado a você... Privado... de todas as memórias felizes...”

Fei sabia que estava acabado. Não tinha forças e, agora, sequer a vontade para lutar e impedir a absorção por parte do outro. E afinal, de que adiantava resistir? Se havia tão pouco dentro de si mesmo... Se não tinha como mostrar algo melhor... Talvez Id tivesse razão.

Ainda assim... A sensação é agradável... É quase bom... Agora eu entendo...! Não há necessidade de resistir. Eu, originalmente, fui só uma existência que foi criada como uma cobertura para esconder Id. Então, seria melhor voltar para aquele lugar... Vamos juntos... Apagar tudo... Incluindo a nós mesmos...!”

Uma súbita sensação de consciência o alcançou de repente, uma maré de frio e lucidez em meio ao calor de seus próprios sentimentos, como se alguém tivesse aberto uma janela ou ligasse sobre seu rosto uma luz intensa, e uma voz familiar o chamou.

Lembre-se! Você não ia salvar Elly?

“Elly? É isso mesmo...! Elly...!”

Seus olhos se abriram e ao dar conta de si mesmo, Fei deixou de flutuar à deriva. Não podia deixar terminar ainda. Não estava acabado, e tinha assuntos a concluir.

_ Eu tenho que salvar Elly!

Repentinamente, ele percebeu não estar mais no vazio de sua mente. Estava num aposento diferente, fechado, escuro, um recesso vagamente familiar de sua mente.
“O que é esse lugar...?”
Havia uma tela enorme diante de si, como a tela de um cinema. O filme sendo exibido, porém, era curto e repetia-se incessantemente. Um garotinho jogava uma bola para uma mulher adulta, provavelmente sua mãe. Ela a devolvia, e ele a deixava escapar. Rindo, ele corria atrás dela...
... e o filme voltava ao momento em que a mãe recuperava a bola. Sempre a mesma cena, repetida vez após a outra. E Fei percebeu um garotinho sentado no chão, assistindo. Um garotinho idêntico ao mostrado no filme, e muito familiar.
_ O que é que ele fez agora?! – veio outra voz por trás dele – Ele só te chamou aqui pra proveito próprio...
Id estava diante de Fei, parecendo aborrecido e levemente surpreso. Antes que Fei perguntasse qualquer coisa, ele explicou:
_ Este é o interior da concha da sua personalidade básica, o quarto do ‘covarde’. Tenho certeza de que você esteve aqui muitas vezes antes.
_ Entendo... – Fei voltou-se, reconhecendo agora a cena – Eu me lembro... Em meus sonhos.
_ Tudo o que era desprezado e indesejado, ele empurrou para mim – Id aproximou-se, olhando com raiva, desagrado e superioridade para o menino sentado diante da tela, que parecia alheio a tudo o que não fosse a cena repetida – enquanto ele se trancou em seu próprio mundinho... O Fei ‘covarde’. A base das nossas personalidades.
O menino que, Fei percebia agora, parecia quase transparente em sua falta de vivência e experiências reais, enfim deu-se conta de que não estava sozinho e ficou de pé, voltando-se curioso para ele.
_ Quem é você...? Ah, você é meu...
Voltou-se novamente para a tela, como se não fosse capaz de manter a atenção afastada dela por muito tempo, e puxou Fei pela mão.
_ Ei... Vamos assistir isso juntos! Essa é a minha coisa mais importante do mundo todo...
_ Hah...! – fez Id – Repetindo vez após a outra os tempos em que ele vivia cheio de felicidade, ele vive em seu próprio mundinho feliz.
Id se afastou, dando as costas à tela e conseguindo a atenção de Fei. Aquela tela o incomodava. Era uma visão de paz e alegria, sim, mas depois de pouco tempo a repetição continuada a tornava perturbadora de certo modo; parecia terrível imaginar que a única felicidade que podia encontrar em seu interior fosse tão pouca. E apesar do desprezo óbvio de Id, era impossível não notar que ele também invejava o que só o outro podia assistir.
_ Enquanto eu só continuo vivo por causa do que tem naqueles restos que ele deixou pra trás. Aqui! – Id voltou-se para Fei de repente, com uma determinação feroz e rancorosa em seu rosto – Eu vou te mostrar... ‘Tudo’ sobre mim.

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