sábado, 11 de março de 2017

Capítulo Cinquenta e Oito Ponto Dois

(...)

Uma segunda tela abriu-se, agora diante de Id, e uma contagem regressiva em preto e branco semelhante às dos filmes antigos se mostrou diante deles. Tudo ao redor pareceu escurecer, mas Fei estava ciente da voz de Id por toda a parte.

‘A nossa era uma família comum.’
Imagens apareceram, ilustrando aos poucos o que Id dizia, mostrando o interior de uma casa simples, com um menino pequeno à mesa, que se levantou feliz quando a porta se abriu, deixando passar um homem, que saudou o filho e também a bela esposa.

‘Um pai severo, mas confiável. Uma mãe gentil e amorosa. Até então, era felicidade completa. Mas um dia... Mamãe, de repente, mudou’.
Fei viu o menino, confuso, aproximar-se da mãe. Ela estava de costas para ele e voltou-se ao ser chamada... mas seu rosto era frio e sem expressão. E o menino recuou.
‘Era como se ela fosse uma pessoa totalmente diferente. E, daquele dia em diante... ‘Fei’ perdeu seu lar’

Outra cena mostrou o pai saindo de casa, enquanto o menino corria atrás dele.
‘Papai saía com muita freqüência. Ele tinha algum trabalho importante’
A criança voltou-se assustada, percebendo a figura da mãe aproximar-se lentamente dele. E era difícil acreditar que um menino tão pequeno pudesse sentir tamanho pavor na presença da própria mãe.
‘Quando papai estava fora, ‘Fei’ era levado para um lugar com máquinas misteriosas’.

A imagem mudou para mostrar a mãe ao lado do menino no interior do que parecia uma clínica médica de Solaris, ou algum tipo de laboratório de pesquisas extremamente avançado. Aquilo lembrava muito o laboratório de Krelian, com diversos Executores trabalhando em suas dependências, e Fei perguntou-se a respeito enquanto a voz de Id continuava:
‘Lá dentro, havia muita gente vestida de forma estranha. Muitos tipos de sondas foram injetados no corpo de ‘Fei’ como o início de alguma espécie de experiências. Os testes causavam a Fei muita dor’

MAMÃE, ME AJUDE!

Dor

O QUE ESTÁ FAZENDO?

Dor

NÃO! NÃÃÃÃÃÃOOOO!

E Fei percebeu que sua mãe, observando a tudo o que acontecia através de uma janela, não reagia. Apenas continuava a analisar o que acontecia, a mesma expressão distante em seu rosto, e ele sentiu as pontas dos dedos formigarem. Em algum lugar dentro de si mesmo, ainda parecia capaz de recordar aqueles dias intermináveis.
‘Mamãe não vinha ajudá-lo. O jovem ‘Fei’ não tinha como resistir. Mas ele era capaz de suportar.

Eventualmente, as experiências se tornaram insuportáveis’.

As imagens mudaram novamente. Havia três pessoas na mesma sala que o menino Fei, pessoas de aparência estranha. Parecia que suas feições estavam derretidas, ou cobertas por máscaras bizarras. Não era possível ver seus rostos claramente.  E enquanto Id falava, ele notou que as pessoas tombavam diante do menino, uma após a outra.
‘Muitas pessoas se reuniam ao redor de ‘Fei’. Essas pessoas tinham uma alta compatibilidade com as Relíquias Anima. Esse contato psíquico com Fei era para forçá-lo a despertar.
Mas ninguém podia fazer contato com ‘Fei’. O poder arrancado de ‘Fei’, contra a sua vontade, destruía a todos eles’.
_ Isso é inacreditável! – murmurou Fei, horrorizado – Mamãe permitiu que tudo isso acontecesse...? E... Contato psíquico? O que quer dizer com ‘me despertar’?
_ Para despertar deus, tudo tinha que estar em perfeita ordem, sem nada faltando... As coisas divididas no passado deviam se tornar um todo completo mais uma vez.

Outra mudança. Mais e mais pessoas, alguns não humanos, enfileiravam-se ao redor de Fei. E todos, um após o outro, tombavam diante dele.
‘Pessoas incontáveis morreram diante dos olhos de Fei. Homens, mulheres... Os velhos, os jovens... Até meio-humanos. Sofrimento, angústia, medo, êxtase... Uma variedade de emoções e palavras perduravam... E desabavam sobre Fei como bonecas quebradas. Era uma visão... Do INFERNO!!’
Fei desviou seus olhos, tentando bloquear as visões horrendas, enquanto uma pergunta formou-se em sua mente. E ao tornar a olhar, percebeu que as imagens e Id já estavam respondendo, ao mostrar novamente seu pai:
‘Diante do papai, ela agia normalmente. Quando Fei tentava contar ao pai sobre a estranha conduta da mãe e sobre as experiências, a mente do pai era distraída por seu trabalho e ele não ouvia de verdade. Ele pensava que eram apenas fantasias de infância.’

Mas ele não teve que suportar a dor muito mais... ’.

Fei viu a si mesmo novamente, ainda uma criança, e então o mundo todo à sua volta pareceu tingir-se de vermelho. E foi como se o menino Fei, de pé, prosseguisse manchado de vermelho, de pé, caminhando resoluto para frente e com seus cabelos desalinhados, enquanto outro de si ficava para trás, sentado e parecendo alheio à agressividade ao seu redor. E a qualquer outra coisa. Estava presenciando a separação entre Id e o ‘covarde’.

‘O subsconsciente de ‘Fei’ descobriu um modo de fugir do trauma. Ele formou uma persona separada para lidar com coisas de que ele não gostava, ou não conseguia suportar. Ele removeu-se do caminho das dores. O meu papel era receber todas as coisas que ele odiava, forçadas sobre mim no momento em que elas surgiam’.

Era impossível não perceber a raiva inerente às palavras de Id, e agora o compreendia melhor. Ele não decidira odiar tudo o que existia: apenas não conhecia outra coisa.

‘Desde o momento da minha divisão dele, fui dominado pelo ódio. Aquele ódio tornou-se naturalmente em impulsos destrutivos. Eu queria destruir tudo. Mamãe, papai... O mundo inteiro’

A cena tornou a mudar. No interior da casa, o pai interrogava a mãe, que não reagia. E entre os dois, o menino Fei parecia olhar para o vazio, com a mesma expressão fixa e indiferente.

‘Papai finalmente percebeu a conduta estranha de mamãe, mas já era tarde demais. Eu tinha me separado totalmente daquele covarde... Meu ‘eu’ original. As marionetes estavam quebradas... E... Também estava o coração de ‘Fei’.

_ ... O que levaria mamãe a fazer uma coisa dessas...?
_ Mamãe repetia as experiências para estudar o poder que ela sabia que existia dentro de mim – Id retrucou – Sim, aquela mulher... Mamãe, era Miang.
_ Isso é mentira!
_ Não, é verdade – a resposta pareceu ecoar, indo até o mundo da consciência onde Id lutava com Khan – Mamãe era Miang.


_ Sim, isso mesmo – Khan murmurou, confirmando de cabeça baixa – Karen tinha se tornado Miang.
_ O que foi que disse? – Citan perguntou, e Khan respondeu com pesar:
_ Não é nada especial. Miang não tem apenas um corpo hospedeiro. As raízes de Miang estão seladas nos genes de todas as mulheres. Qualquer uma delas poderia se tornar Miang.
_ Apenas aconteceu de ser a vez da mamãe – Id completou o raciocínio – Apenas Elly era originalmente ‘especial’!!
E tornou a atacar, o braço esquerdo baixando e descarregando mais uma onda de chi agressivo que empurrou o Gear de Khan mais para trás, na direção de outro rio de lava. E ao invés de se defender, ele colocou-se equilibrado sobre a perna direita, parecendo pronto para atacar.
Seu punho avançou, alcançando Weltall por um momento e então recebendo um contragolpe terrível, que tornou a lançá-lo para trás. Ofegante, esforçando-se para manter-se no combate, Khan continuou:
_ Karen... Miang, percebeu que o eixo do tempo de memória de Fei tinha aumentado em duas ou três vezes. Ela ficou então convencida de que Fei era o ‘Contato’!
_ Contato?!


‘... Sim, eu era o Contato. Foi por isso que ELE chamou por mim... E porque a hora tinha chegado...’

No interior de sua mente, Fei pôde ver a si mesmo enquanto criança ao lado de sua mãe, do lado de fora de sua casa. Ao invés da brincadeira com a bola, porém, o que ele viu foi seu pai caído sobre os próprios joelhos e cuspindo sangue, enquanto a figura ameaçadora vestida de bronze aproximava-se dele, impávida, e o menino Fei saía correndo da casa.
‘_ Pare! Pare com isso! Papai! Papai! – voltou-se para a mãe e começou a sacudí-la – Mamãe! Ajude o papai! Ei, mamãe! Por que você não vai ajudar? Papai... Papai vai morrer!

‘Grahf tinha vindo procurar o poder que existe dentro de mim. Para voltar a seu próprio corpo. Você entende agora, não entende...? Grahf é... Lacan’

E Fei percebeu. A imagem ainda mostrava Grahf, mas em seu interior, ele podia sentir uma presença diferente... Familiar, mas não de Grahf. Ele podia ver outra pessoa com o seu rosto, alguém que ele vira durante um de seus momentos de memória. Fosse como fosse no exterior, aquele era Lacan. E Id prosseguiu.

‘Nós, seus descendentes, que herdamos seus pensamentos e memórias permanentes dele, sabemos bem demais... Dividido há 500 anos... Ele se tornaria uma parte de nós dois...
Lacan se tornou Grahf. Ele destruiu tudo na face da terra. Ele então aprendeu como possuir os corpos de outros, habitando suas mentes. Provavelmente, ele foi capacitado a fazer assim depois de seu contato com a ‘Existência’. Os corpos morriam, mas o espírito de Lacan continuava a viver ao possuir outros. Ele tinha vindo aquele dia para devolver sua alma, enfim, à reencarnação perfeita de seu corpo físico... O corpo de ‘Fei’.
Papai... o enfrentou... Mas ele não pôde proteger mamãe, ou eu. Ele lutou lamentavelmente, enquanto tossia o próprio sangue. Grahf fez de papai uma piada, e mamãe sequer o ajudou quando ele mais precisava dela.
Quanto ao filho deles... Ele não conseguia mais agüentar o que estava acontecendo... ’

Uma cena longa e vívida mostrou-se então. Khan estava no chão, esforçando-se para ficar de pé, enquanto Grahf caminhava lentamente em sua direção, quando a atenção dos dois voltou-se. Uma luz dourada intensa começou a emanar de Fei, explodindo rumo aos céus como um vulcão em erupção.
Feixes desencontrados e descontrolados de chi puro ergueram-se aos ares e serpentearam em todas as direções, e uma onda de chi vermelho surgiu em seu meio, agressividade pura condensada, e a tudo isso Karen assistiu com o mesmo ar frio e indiferente.

‘Ele se entregou a seus sentimentos e liberou seu poder. E, como resultado...’

Fei novamente ouviu o tilintar do crucifixo, que agora aparecia caído no chão. A visão fez com que suas entranhas congelassem, antes mesmo que Id concluísse o raciocínio:

‘ ... Mamãe morreu’

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