Capítulo 57 – Flashback
Ao lado de um imenso cruzador de areia, a noite
escura era iluminada em tons avermelhados pela fogueira que o grupo rebelde
acendera. Estavam todos reunidos em pequenos grupos espalhados ao redor do
fogo, mas dois homens sentados mais próximos não participavam de qualquer
conversa, parecendo perdidos em pensamentos até um terceiro homem seaproximar.
_ Vamos, pessoal, comam! Não se
encontra esse tipo de comida por aqui ultimamente, não?
Roni Fatima era loiro, alto e de
olhos azuis, muito parecido em feições com seus descendentes futuros, Sigurd e
Bartholomew. Ao reunir-se aos companheiros ao redor da fogueira, ele deu de
ombros e piscou.
_ Bom, isso também é devido ao
meu negócio, savvy.
_ ... O que foi, Lacan? –
perguntou o jovem Rene, reparando no silencioso rapaz de cabelos presos num
rabo de cavalo – Está meio deprimido. O que está te incomodando? Está
preocupado com alguma coisa?
_ Não é nada... – Lacan murmurou
sem erguer os olhos e sem dar atenção a Roni, que se aproximava do fogo – Estou
apenas pensando na pintura de Sophia. Não sei por que eu concordei em fazer o
retrato dela...
_ Sophia – Rene lembrou-se – Está
falando da sua amiga de infância que agora é a Madre Sagrada de Nisan?
_ Ela não é bem uma amiga de
infância – Lacan explicou nervosamente, sempre de olhos baixos – Eu apenas vim
a conhecê-la no monastério perto da minha casa quando eu era criança. Ela ia
para a clínica de lá para convalescência. Ela era frágil.
_ Então – Rene perguntou,
enquanto Roni olhava de um para o outro em silêncio e Lacan continuava
parecendo preocupado – Pelo que está preocupado quanto a pintá-la?
_ Ela não deseja ser, ela
própria, um símbolo da sua seita – Lacan explicou, remexendo inquieto na areia
do solo – Na verdade... Parece que ela não estava interessada em ter o retrato
pintado no início. Mas, quando ela ouviu que eu seria o pintor, ela mudou de
idéia e concordou. É isso o que eu não entendo...
_ Sei – Roni murmurou, dando de
ombros – Então, ela deve gostar de você.
_ Do que está falando? – Lacan
voltou-se desconfiado para o outro. Apesar dos modos elegantes e da natural
liderança, Roni tinha um senso de humor estranho. Por vezes era difícil
entender se ele estava brincando ou não. E Roni tornou a dar de ombros.
_ É assim que são as mulheres.
Certo, Krelian...?
O homem silencioso de cabelos
azuis, do outro lado da fogueira, não pareceu ouvir a princípio, o olhar
voltado para o deserto e com ar distante, o que fez Roni insistir.
_ Ei Krel!
_ Hã?
_ O que é que há? – perguntou
Rene, mastigando – Não tá comendo nada? Está pronto pra comer.
_ Ah, claro...
_ A Madre Sagrada de Nisan, hein?
– Roni murmurou, parecendo pensativo – O que, está disposto a ofender a
providência divina ou coisa parecida, Lacan?
_ Pára com isso...! – Lacan
tornou a baixar os olhos, tremendamente embaraçado – N-não é nada disso...
Sorrindo, Roni foi até onde Lacan
estava, sentando-se do seu lado e deixando o outro ainda mais desconfiado.
_ O q-quê?
Roni meramente deu um tapinha no
ombro do amigo a princípio. Lacan era uma ótima pessoa, mas um pouco depressivo
demais. Erguendo os olhos e contemplando a noite estrelada em silêncio por um
instante, Roni por fim comentou:
_ Você tem que pegar mais leve...
Krelian e Lacan estavam em Nisan,
conversando numa manhã de sol. Mesmo o apático Lacan não tinha como não notar o
quanto aquilo era curioso. Krelian tinha uma reputação feroz entre seus
inimigos e inspirava algum temor mesmo entre aliados que não o conheciam tão
bem por ser um guerreiro poderoso, invencível no campo de batalha. E ali estava
ele, começando a falar como um autêntico intelectual.
_ Sophia começou me mostrando que
livros são a melhor maneira de acalmar o coração... E agora estou viciado em
leitura. Não é que queira me gabar... mas aprendi uma porção de coisas que
nunca soube antes. Ultimamente, estive lendo isso.
Lacan olhou, sem entender os
caracteres antigos na capa, e acabou perguntando o que era aquilo.
_ Uma coisa que peguei emprestado
de Melchior. É sobre uma forma de engenharia molecular... Nanotecnologia.
Acredito que seja um livro descoberto nas antigas ruínas da Civilização Zeboim.
É uma cópia do relatório da pesquisa de alguém, mas está incompleto.
E Krelian mostrou a Lacan parte
do conteúdo do livro. Ele não entendia muito os números e palavras escritas
ali, mas os trechos onde as anotações estavam interrompidas eram óbvios demais.
_ Acho que havia ainda mais
coisas maravilhosas escritas nele, mas agora nunca saberemos.
Outro dia, outro ponto de Nisan.
Lacan estava numa sala reservada da catedral de Nisan, pintando um grande
retrato. Ou era o que pareceria se alguém entrasse naquele momento na sala.
_ O que houve? Você não parece
muito bem.
Ele acenou que não com a cabeça,
mas a verdade era que estava retocando aquele mesmo trecho do quadro pela
quarta vez, e sabia que não estava bom; teria que retocar novamente. Sentada em
sua cadeira, Sophia o olhava com preocupação e isso só o fazia sentir-se pior.
_ Ultimamente, você tem parecido
melancólico quase todos os dias. Aconteceu alguma coisa?
_ Eu não sei – Lacan murmurou,
acenando outra vez. Sequer tinha energia para negar – Eu simplesmente não
consigo pintar agora. Desculpe, mas você se importa de pararmos aqui, por
hoje...?
_ Entendo – ela concordou com um
aceno de cabeça – Não adianta forçar-se demais. Por que não descansa por algum
tempo? Vou pedir que Krelian leve você...
Outra noite ao redor da fogueira
e, diferente do outro dia, Krelian estava falando. Ele não olhava para qualquer
dos companheiros, os olhos sempre voltados para o deserto infinito diante de si.
Mas era tão incomum vê-lo disposto a falar que ninguém o interrompia.
_ Mesmo assim, houve um tempo em
que eu fiz algumas coisas realmente horríveis. Eu atacava
indiscriminadamente... Todos à minha volta me temiam... Até meus amigos. Eu
vivia minha vida cercado por pessoas que olhavam para mim com temor em seus
olhos.
Ele acenou com a cabeça, o
semblante duro repentinamente suavizando-se e a sombra de um sorriso surgindo
em seu rosto.
_ Mas ela foi a única que não
teve medo de mim. Ela apenas sorria. Paz de espírito... Foi ela quem me ensinou
o que isso era, e como eu poderia conseguí-la... Ela me ensinou a viver como um
ser humano.
Outro dia. A sala do retrato.
Lacan estava sozinho, tentando sem sucesso livrar-se do desconforto. Não queria
voltar àquela sala nunca mais, e mesmo assim, quando dera por si ali estava
novamente. Não queria mais...
_ O que está fazendo, Lacan?
Ele voltou-se, ficando de pé.
Roni e Krelian estavam à porta e ele suspirou de alívio.
_ Ah, é você, Krelian... Eu
estava pensando... em parar de pintar o retrato...
_ Por que parar agora...?
Pois mais de noventa por cento da
pintura estava pronta àquela altura, restando apenas um espaço inacabado no
canto inferior direito da moldura para finalizar. E Lacan baixou os olhos.
_ São as circunstâncias. Eu não a
deveria estar pintando numa hora como essa – e encarou os dois, esperando
convencer – Eventualmente, ela também precisa apresentar-se nas linhas de
frente. Então...
_ É esse mesmo o problema?
Lacan não suportou o olhar de
Krelian, astuto demais para aceitar uma desculpa tão fraca. Ele não queria
dizer, mas não conseguia pensar em nada mais. Voltou as costas para os dois e
baixou a cabeça, hesitando por um momento.
_ Lacan...?
_ O sorriso dela... Está me
matando – Lacan murmurou, levantando a cabeça e olhando para o teto.
_ Quanto mais ela sorri pra mim,
mais eu... Sinto o meu próprio ser se tornar insignificante. Dentro do meu
coração existe essa existência vazia. A não ser pela pintura, eu não tenho
qualquer valor. Mesmo assim, ela continua a aceitar a minha presença. Sinto
como se estivesse ficando menor e menor.
Ele voltou-se para o retrato. Lá
estava o semblante sereno de Sophia, como ele a havia retratado, para os olhos
dos leigos. Mas a pintura agora transmitia muito mais para ele.
_ Eu não tinha esse sentimento no
início. Eu só queria pintá-la por mais um minuto... Mais um segundo que fosse.
Eu queria continuar pintando para sempre. Mas, de repente, eu não conseguia. À
medida que a pintura se aproximava do término, a parte vazia de mim começou a
se manifestar nas minhas pinceladas. Eu a deveria estar pintando como ela é
realmente... mas... Esse retrato é... o meu próprio eu. Meu ‘eu’ vazio começou
a surgir aí dentro. É por isso que... eu tenho que parar agora.
_ Seu próprio eu...? – Krelian
aproximou-se, e havia uma impaciência muito incomum em seu rosto – Está apenas
fugindo! Não consegue suportar quando ela sorri para você! Ao pintar o retrato
dela, você percebeu o espaço entre seu próprio vazio interior e a abundância
interior dela. E você não conseguiu preencher esse vazio... É por isso que está
abandonando sua pintura.
Lacan baixou os olhos, e Krelian
aproximou-se mais um passo, fazendo o outro voltar-se para ele.
_ Você a está recusando! E mesmo
assim, não consegue se forçar a abandoná-la, consegue?
Diante do silêncio de Lacan,
Krelian fez que não com a cabeça, parecendo irritado com a atitude do outro.
_ E mesmo com tudo isso... Por
que é que ela continua a sorrir pra você? Você, que não consegue aceitar os
sentimentos dela... Você, que não quer aceitar os sentimentos dela...! Me diga
por que!
Lacan não tinha nada a dizer, e
manteve os olhos baixos. E Krelian afastou-se dele, dando-lhe as costas e
também baixando os olhos enquanto murmurava:
_ Se fosse eu... Recebendo tais
sentimentos...
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