sábado, 4 de fevereiro de 2017

Capítulo Cinquenta e Sete

Capítulo 57 – Flashback


Ao lado de um imenso cruzador de areia, a noite escura era iluminada em tons avermelhados pela fogueira que o grupo rebelde acendera. Estavam todos reunidos em pequenos grupos espalhados ao redor do fogo, mas dois homens sentados mais próximos não participavam de qualquer conversa, parecendo perdidos em pensamentos até um terceiro homem seaproximar.
_ Vamos, pessoal, comam! Não se encontra esse tipo de comida por aqui ultimamente, não?
Roni Fatima era loiro, alto e de olhos azuis, muito parecido em feições com seus descendentes futuros, Sigurd e Bartholomew. Ao reunir-se aos companheiros ao redor da fogueira, ele deu de ombros e piscou.
_ Bom, isso também é devido ao meu negócio, savvy.
_ ... O que foi, Lacan? – perguntou o jovem Rene, reparando no silencioso rapaz de cabelos presos num rabo de cavalo – Está meio deprimido. O que está te incomodando? Está preocupado com alguma coisa?
_ Não é nada... – Lacan murmurou sem erguer os olhos e sem dar atenção a Roni, que se aproximava do fogo – Estou apenas pensando na pintura de Sophia. Não sei por que eu concordei em fazer o retrato dela...
_ Sophia – Rene lembrou-se – Está falando da sua amiga de infância que agora é a Madre Sagrada de Nisan?
_ Ela não é bem uma amiga de infância – Lacan explicou nervosamente, sempre de olhos baixos – Eu apenas vim a conhecê-la no monastério perto da minha casa quando eu era criança. Ela ia para a clínica de lá para convalescência. Ela era frágil.
_ Então – Rene perguntou, enquanto Roni olhava de um para o outro em silêncio e Lacan continuava parecendo preocupado – Pelo que está preocupado quanto a pintá-la?
_ Ela não deseja ser, ela própria, um símbolo da sua seita – Lacan explicou, remexendo inquieto na areia do solo – Na verdade... Parece que ela não estava interessada em ter o retrato pintado no início. Mas, quando ela ouviu que eu seria o pintor, ela mudou de idéia e concordou. É isso o que eu não entendo...
_ Sei – Roni murmurou, dando de ombros – Então, ela deve gostar de você.
_ Do que está falando? – Lacan voltou-se desconfiado para o outro. Apesar dos modos elegantes e da natural liderança, Roni tinha um senso de humor estranho. Por vezes era difícil entender se ele estava brincando ou não. E Roni tornou a dar de ombros.
_ É assim que são as mulheres. Certo, Krelian...?
O homem silencioso de cabelos azuis, do outro lado da fogueira, não pareceu ouvir a princípio, o olhar voltado para o deserto e com ar distante, o que fez Roni insistir.
_ Ei Krel!
_ Hã?
_ O que é que há? – perguntou Rene, mastigando – Não tá comendo nada? Está pronto pra comer.
_ Ah, claro...
_ A Madre Sagrada de Nisan, hein? – Roni murmurou, parecendo pensativo – O que, está disposto a ofender a providência divina ou coisa parecida, Lacan?
_ Pára com isso...! – Lacan tornou a baixar os olhos, tremendamente embaraçado – N-não é nada disso...
Sorrindo, Roni foi até onde Lacan estava, sentando-se do seu lado e deixando o outro ainda mais desconfiado.
_ O q-quê?
Roni meramente deu um tapinha no ombro do amigo a princípio. Lacan era uma ótima pessoa, mas um pouco depressivo demais. Erguendo os olhos e contemplando a noite estrelada em silêncio por um instante, Roni por fim comentou:
_ Você tem que pegar mais leve...

Krelian e Lacan estavam em Nisan, conversando numa manhã de sol. Mesmo o apático Lacan não tinha como não notar o quanto aquilo era curioso. Krelian tinha uma reputação feroz entre seus inimigos e inspirava algum temor mesmo entre aliados que não o conheciam tão bem por ser um guerreiro poderoso, invencível no campo de batalha. E ali estava ele, começando a falar como um autêntico intelectual.
_ Sophia começou me mostrando que livros são a melhor maneira de acalmar o coração... E agora estou viciado em leitura. Não é que queira me gabar... mas aprendi uma porção de coisas que nunca soube antes. Ultimamente, estive lendo isso.
Lacan olhou, sem entender os caracteres antigos na capa, e acabou perguntando o que era aquilo.
_ Uma coisa que peguei emprestado de Melchior. É sobre uma forma de engenharia molecular... Nanotecnologia. Acredito que seja um livro descoberto nas antigas ruínas da Civilização Zeboim. É uma cópia do relatório da pesquisa de alguém, mas está incompleto.
E Krelian mostrou a Lacan parte do conteúdo do livro. Ele não entendia muito os números e palavras escritas ali, mas os trechos onde as anotações estavam interrompidas eram óbvios demais.
_ Acho que havia ainda mais coisas maravilhosas escritas nele, mas agora nunca saberemos.

Outro dia, outro ponto de Nisan. Lacan estava numa sala reservada da catedral de Nisan, pintando um grande retrato. Ou era o que pareceria se alguém entrasse naquele momento na sala.
_ O que houve? Você não parece muito bem.
Ele acenou que não com a cabeça, mas a verdade era que estava retocando aquele mesmo trecho do quadro pela quarta vez, e sabia que não estava bom; teria que retocar novamente. Sentada em sua cadeira, Sophia o olhava com preocupação e isso só o fazia sentir-se pior.
_ Ultimamente, você tem parecido melancólico quase todos os dias. Aconteceu alguma coisa?
_ Eu não sei – Lacan murmurou, acenando outra vez. Sequer tinha energia para negar – Eu simplesmente não consigo pintar agora. Desculpe, mas você se importa de pararmos aqui, por hoje...?
_ Entendo – ela concordou com um aceno de cabeça – Não adianta forçar-se demais. Por que não descansa por algum tempo? Vou pedir que Krelian leve você...

Outra noite ao redor da fogueira e, diferente do outro dia, Krelian estava falando. Ele não olhava para qualquer dos companheiros, os olhos sempre voltados para o deserto infinito diante de si. Mas era tão incomum vê-lo disposto a falar que ninguém o interrompia.
_ Mesmo assim, houve um tempo em que eu fiz algumas coisas realmente horríveis. Eu atacava indiscriminadamente... Todos à minha volta me temiam... Até meus amigos. Eu vivia minha vida cercado por pessoas que olhavam para mim com temor em seus olhos.
Ele acenou com a cabeça, o semblante duro repentinamente suavizando-se e a sombra de um sorriso surgindo em seu rosto.
_ Mas ela foi a única que não teve medo de mim. Ela apenas sorria. Paz de espírito... Foi ela quem me ensinou o que isso era, e como eu poderia conseguí-la... Ela me ensinou a viver como um ser humano.

Outro dia. A sala do retrato. Lacan estava sozinho, tentando sem sucesso livrar-se do desconforto. Não queria voltar àquela sala nunca mais, e mesmo assim, quando dera por si ali estava novamente. Não queria mais...
_ O que está fazendo, Lacan?
Ele voltou-se, ficando de pé. Roni e Krelian estavam à porta e ele suspirou de alívio.
_ Ah, é você, Krelian... Eu estava pensando... em parar de pintar o retrato...
_ Por que parar agora...?
Pois mais de noventa por cento da pintura estava pronta àquela altura, restando apenas um espaço inacabado no canto inferior direito da moldura para finalizar. E Lacan baixou os olhos.
_ São as circunstâncias. Eu não a deveria estar pintando numa hora como essa – e encarou os dois, esperando convencer – Eventualmente, ela também precisa apresentar-se nas linhas de frente. Então...
_ É esse mesmo o problema?
Lacan não suportou o olhar de Krelian, astuto demais para aceitar uma desculpa tão fraca. Ele não queria dizer, mas não conseguia pensar em nada mais. Voltou as costas para os dois e baixou a cabeça, hesitando por um momento.
_ Lacan...?
_ O sorriso dela... Está me matando – Lacan murmurou, levantando a cabeça e olhando para o teto.
_ Quanto mais ela sorri pra mim, mais eu... Sinto o meu próprio ser se tornar insignificante. Dentro do meu coração existe essa existência vazia. A não ser pela pintura, eu não tenho qualquer valor. Mesmo assim, ela continua a aceitar a minha presença. Sinto como se estivesse ficando menor e menor.
Ele voltou-se para o retrato. Lá estava o semblante sereno de Sophia, como ele a havia retratado, para os olhos dos leigos. Mas a pintura agora transmitia muito mais para ele.
_ Eu não tinha esse sentimento no início. Eu só queria pintá-la por mais um minuto... Mais um segundo que fosse. Eu queria continuar pintando para sempre. Mas, de repente, eu não conseguia. À medida que a pintura se aproximava do término, a parte vazia de mim começou a se manifestar nas minhas pinceladas. Eu a deveria estar pintando como ela é realmente... mas... Esse retrato é... o meu próprio eu. Meu ‘eu’ vazio começou a surgir aí dentro. É por isso que... eu tenho que parar agora.
_ Seu próprio eu...? – Krelian aproximou-se, e havia uma impaciência muito incomum em seu rosto – Está apenas fugindo! Não consegue suportar quando ela sorri para você! Ao pintar o retrato dela, você percebeu o espaço entre seu próprio vazio interior e a abundância interior dela. E você não conseguiu preencher esse vazio... É por isso que está abandonando sua pintura.
Lacan baixou os olhos, e Krelian aproximou-se mais um passo, fazendo o outro voltar-se para ele.
_ Você a está recusando! E mesmo assim, não consegue se forçar a abandoná-la, consegue?
Diante do silêncio de Lacan, Krelian fez que não com a cabeça, parecendo irritado com a atitude do outro.
_ E mesmo com tudo isso... Por que é que ela continua a sorrir pra você? Você, que não consegue aceitar os sentimentos dela... Você, que não quer aceitar os sentimentos dela...! Me diga por que!
Lacan não tinha nada a dizer, e manteve os olhos baixos. E Krelian afastou-se dele, dando-lhe as costas e também baixando os olhos enquanto murmurava:
_ Se fosse eu... Recebendo tais sentimentos...

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