sábado, 11 de fevereiro de 2017

Capítulo Cinquenta e Sete Ponto Um

(...)

Krelian lembrou-se da batalha mais recente na qual tomara parte, quando Sophia deixara seu Omnigear, Regulus. A saúde dela era frágil e parecia desgastar-se ainda mais sempre que pilotava. Era teimosa demais para permitir que seus companheiros lutassem sozinhos, mas naquele dia ela mal conseguia respirar ao descer da cabine. Ele, naturalmente, permanecera ao lado dela durante toda a batalha, protegendo com cada fibra de força que ele e seu próprio Omnigear podiam dispor, e embora isso fosse poder e habilidade que muitos outros apenas sonhavam, ele lamentava que fosse tão pouco o que podia fazer. Com todo o seu esforço, não era capaz de protegê-la. Mais do que depressa ele saltara de sua cabine e fora até ela, amparando-a.
_ Está se negligenciando demais! Por que não é mais gentil para consigo mesma, Senhora?

Sem dizer palavra, enquanto os dois amigos estavam de costas um para o outro, Roni caminhou até o quadro de Sophia e admirou a obra por um momento, voltando-se depois para Lacan.
_ ... Essa é mesmo a verdadeira expressão dela?
_ É – Lacan deu de ombros, abatido – Para pessoas que não a conhecem assim tão bem... Eu acho...
_ O sorriso dela... Não sei – Roni murmurou, avaliando a pintura com olhar crítico – O sorriso neste retrato é, de certa forma, diferente daquele que ela geralmente nos mostra. Eu percebo que os sentimentos de Lacan estão aí, mas...
E ele acenou que não com a cabeça, sorrindo serenamente.
_ ... eu não acho que ela jamais tenha se aberto aos outros e exposto seu verdadeiro ‘eu’ desta maneira a ninguém.
Lacan e Krelian voltaram-se, mas Roni continuava admirando a pintura.
_ Você esteve pintando uma expressão tão bonita de Sophia... Eu simplesmente não consigo entender por que quer parar agora.
_ Bonita...? – Lacan meneou a cabeça, sempre de olhos baixos – Essa pintura...? Ela é qualquer coisa, menos bonita...
_ Você diz que é vazio, Lacan – Roni interrompeu, agora sério – Então, por que é que continua com a gente? O que temos feito até aqui não são apenas atos de misericórdia. É uma luta pela liberdade. Vez após vez você passou por situações onde sua vida esteve em risco, juntamente com todos nós... Um homem que não tem nada em seu coração não poderia fazer esse tipo de coisa... Certo?
_ Roni, está me dando crédito demais – Lacan tornou a menear a cabeça, sempre de olhos baixos – Enquanto se faz alguma coisa que o mantenha ocupado... pode-se ignorar o vazio por dentro. Desde o início, minha própria existência foi um vazio. Não importaria se eu tivesse que morrer neste exato momento... Você vive, você morre... É só isso.
_ Pessimista como sempre, Lacan – retrucou Roni – E agora você está mentindo.
Lacan olhou para Roni, mas o sorriso compreensivo do amigo não deixava espaço para argumentos, e ele apenas tornou a baixar os olhos, permitindo que Roni prosseguisse.
_ Só o que acontece é que você não é bom para expressar seus próprios sentimentos. Você não é vazio. É por isso que ela só mostra seu verdadeiro sorriso a você.
_ Eu não mereço ver o verdadeiro sorriso dela – Lacan tornou a sacudir a cabeça – Ela é a esperança das pessoas. O apoio delas. Há tanto mais que ela deve fazer...! Por que ela abriria seu coração a um mero artista como eu...?
_ Mano...!
A discussão foi interrompida e os três voltaram-se para a porta, por onde Rene e Zephyr entraram um instante depois. Notando de repente que interrompera alguma coisa, Rene olhou ao redor em dúvida.
_ Ei mano... O que vocês estão fazendo aqui?
_ O que aconteceu? – perguntou Roni.
_ O Conselho dos Anciões de Shevat chegou a uma decisão – disse Zephyr – Amanhã, nós partiremos para Soylent.
_ Soylent? – Roni franziu o cenho – Isso é em Solaris...
_ É – Rene pareceu hesitar – E... Sophia vai conosco.
_ Isso é ridículo! – explodiu Krelian – Os refugiados ainda estão chegando! Não podemos permitir que Sophia deixe Nisan! E ir para Soylent!! Pura tolice! O que os Anciões estão pensando?
_ Não – Zephyr acenou com a cabeça – Não foi o desejo do Conselho. Foi a vontade de Sophia. Parece que ela, em pessoa, expressou esse desejo.
_ Não pode ser... – murmurou Krelian – O que ela está pensando?
_ Originalmente, falamos em irmos apenas nós – Rene comentou.
_ Apenas nós?
Krelian voltou-se, e ele e Lacan olharam um para o outro em silêncio. A partir dali, algo mudara para sempre entre os dois.

Horas mais tarde, dera-se a batalha em Soylent. Miraculosamente eles conseguiram escapar, mas não ilesos. Após um pouso de emergência, Lacan apressadamente abrira a cabine de Regulus para encontrar sua piloto desmaiada, e ele próprio não parecia saber o que fazer, tão perdido e penalizado que sequer tentara retirá-la do Gear, meramente abraçado a ela e de olhos fechados, sem dizer palavra.
_ Sophia!
Krelian também viera até ela, preocupado e temendo pelo pior, e com brusquidão ele afastou Lacan do caminho, retirando Sophia de seu Gear e depositando-a gentilmente no chão. Ela estava inconsciente.
_ Sophia... Lacan! O que está fazendo?
Voltou-se e esmurrou o outro. Lacan ficou parado, sem olhar para Krelian ou dizer coisa alguma. Frustrado e irritado, Krelian rosnou:
_ Eu sabia que não podíamos deixar Sophia aos seus cuidados! Eu vou protegê-la... Mesmo que me custe a vida!

Dois dias depois, Sophia repousava na enfermaria do cruzador de Roni, com Krelian aguardando fielmente ao lado dela, esperando à sua cabeceira que despertasse. Pouco mais afastado, também não tendo deixado o aposento durante a maior parte dos dias, Lacan permanecia de cabeça baixa e sem dizer palavra. O silêncio pesado que se estendera desde o campo de batalha foi interrompido apenas quando a porta deslizou para dar entrada a Roni.
_ Por que não vai descansar um pouco, Krel...? Você não dorme desde antes de ontem, não é? Não devia fazer isso consigo mesmo!
_ Eu estou bem – mas Krelian cambaleou, precisando de apoio e balançando a cabeça, como que para clarear os próprios pensamentos – Isso não é problema...
_ Olha, eu tomo conta dela, então vá dormir – Roni insistiu – O que vamos fazer se você também adoecer? Não esqueça que você é o líder das forças militares da seita.
Krelian ergueu os olhos e encontrou Roni de pé ao seu lado. Encarando o amigo por um momento, ele concordou por fim com um aceno, pondo-se de pé e apoiando-se numa parede.
_ Muito bem... Suponho que você tenha razão.
Exausto, agarrando-se em busca de apoio para andar, Krelian saiu da enfermaria. E Roni, assim que teve certeza de que o outro se fora, também caminhou para a porta. Depois de olhar uma última vez na direção de Lacan e Sophia, ele também partiu.
Assim que ficou sozinho, Lacan levantou-se e foi até a cabeceira do leito de Sophia, onde Krelian antes estivera, ajoelhando-se e murmurando:
_ Elly... Eu sinto tanto. Eu... Foi o meu erro que fez isso a você.
Ela continuava adormecida. Ciente de que ela não podia ouvir, após hesitar por um instante, Lacan prosseguiu:
_ Eu fiquei apavorado... Era como se você pudesse enxergar diretamente através de mim. Seus olhos... Aquele olhar... Era eu que estava sendo refletido nos seus olhos. Eu estava olhando para mim mesmo... E então, pintando a mim mesmo...
“Não pude suportar! Foi por isso que... Ah, Elly... – ele sacudiu a cabeça – O que, em nome dos céus, você descobriu dentro de mim?”
Quase sem notar o que estava fazendo, ele tomou a mão dela gentilmente antes de prosseguir:
_ Quando você acordar, acho que vou te perguntar isso... Ou, pensando melhor, não... Não, não quero te sobrecarregar com os meus problemas. Além do mais, eu não seria capaz de te perguntar... Bastaria olhar nos seus olhos e eu não poderia dizer nada... Nem sequer conseguiria te dizer como me sinto...
E a mão dela fechou-se, apertando a dele, enquanto seus olhos serenos se abriam e um sorriso despontou em seu rosto.
_ Você é a pessoa mais doce desse mundo...
_ Elly...!
Ela sentou-se no leito e ele sentou-se onde Krelian estivera, um muito próximo do outro agora enquanto ela dizia:
_ Você é alguém que não pode suportar ver outras pessoas feridas pelos seus atos. Então, você guarda tudo e suporta o fardo sozinho. Se você se ferir no fim, acha que está tudo bem. E é isso... o que eu gosto em você.
_ Pare! – ele soltou a mão dela, meneando a cabeça – Não diga isso. Se você se tornar apenas outro ser humano, todos vão...
_ Os humanos... – ela murmurou, tomando a mão dele novamente e fazendo com que se calasse – não são assim tão frágeis, sabe? Eles não precisam de um símbolo que seja só aparência. Eu acredito que, se você tem luz em seu coração, pode superar qualquer dificuldade. O que estive fazendo é simplesmente mostrar às pessoas que tal luz existe nos corações de todos. Sou apenas uma mulher...
Ela tocou no rosto dele, fazendo com que olhasse em seus olhos.
_ E, para cumprir a minha condição de mulher, estou preparada para jogar fora qualquer coisa... Até mesmo esta posição. Estou apenas fazendo o papel de Sophia. Mas eu ainda sou eu mesma. Não mudei em nada... Uma bebê chorona, egoísta, medrosa... Ainda sou a mesma. Você conseguiria viver uma mentira como essa e ainda ser feliz...? Eu... Não quero fazer isso.
E Lacan enfim compreendeu. Ele sempre pudera ver, a Madre Sagrada que ele pintava estava lá, sobreposta à Elly que conhecia. Sempre. Mas a mesma Elly de sua infância continuava existindo, e ele era a única pessoa a quem ela sentia que poderia se mostrar. E era por isso que não conseguia se afastar, mesmo quando o quadro começara a causar-lhe repulsa. Não podia deixar Elly sozinha.
_ Ah, Lacan... Eu quero viver mais honestamente comigo mesma. Ser capaz de dizer ao homem que eu amo que eu o amo. E eu não me importo se me ferir ou for rejeitada. Só temos uma vida. Não quero olhar para trás um dia e me arrepender de não ter feito tais coisas...
_ E-eu... Eu...
Lacan não encontrava o que dizer, mas estava tudo bem. Naquele momento, os dois entendiam plenamente um ao outro, mesmo que para isso não tivessem palavras. Aquele momento era apenas deles... Como mesmo Krelian, de pé do lado de fora da enfermaria, era forçado a admitir. E não havia espaço para mais ninguém.

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