(...)
Krelian lembrou-se da batalha
mais recente na qual tomara parte, quando Sophia deixara seu Omnigear, Regulus.
A saúde dela era frágil e parecia desgastar-se ainda mais sempre que pilotava.
Era teimosa demais para permitir que seus companheiros lutassem sozinhos, mas
naquele dia ela mal conseguia respirar ao descer da cabine. Ele, naturalmente,
permanecera ao lado dela durante toda a batalha, protegendo com cada fibra de
força que ele e seu próprio Omnigear podiam dispor, e embora isso fosse poder e
habilidade que muitos outros apenas sonhavam, ele lamentava que fosse tão pouco
o que podia fazer. Com todo o seu esforço, não era capaz de protegê-la. Mais do
que depressa ele saltara de sua cabine e fora até ela, amparando-a.
_ Está se negligenciando demais!
Por que não é mais gentil para consigo mesma, Senhora?
Sem dizer palavra, enquanto os
dois amigos estavam de costas um para o outro, Roni caminhou até o quadro de
Sophia e admirou a obra por um momento, voltando-se depois para Lacan.
_ ... Essa é mesmo a verdadeira
expressão dela?
_ É – Lacan deu de ombros,
abatido – Para pessoas que não a conhecem assim tão bem... Eu acho...
_ O sorriso dela... Não sei –
Roni murmurou, avaliando a pintura com olhar crítico – O sorriso neste retrato
é, de certa forma, diferente daquele que ela geralmente nos mostra. Eu percebo
que os sentimentos de Lacan estão aí, mas...
E ele acenou que não com a
cabeça, sorrindo serenamente.
_ ... eu não acho que ela jamais
tenha se aberto aos outros e exposto seu verdadeiro ‘eu’ desta maneira a
ninguém.
Lacan e Krelian voltaram-se, mas
Roni continuava admirando a pintura.
_ Você esteve pintando uma
expressão tão bonita de Sophia... Eu simplesmente não consigo entender por que
quer parar agora.
_ Bonita...? – Lacan meneou a
cabeça, sempre de olhos baixos – Essa pintura...? Ela é qualquer coisa, menos
bonita...
_ Você diz que é vazio, Lacan –
Roni interrompeu, agora sério – Então, por que é que continua com a gente? O
que temos feito até aqui não são apenas atos de misericórdia. É uma luta pela
liberdade. Vez após vez você passou por situações onde sua vida esteve em
risco, juntamente com todos nós... Um homem que não tem nada em seu coração não
poderia fazer esse tipo de coisa... Certo?
_ Roni, está me dando crédito
demais – Lacan tornou a menear a cabeça, sempre de olhos baixos – Enquanto se
faz alguma coisa que o mantenha ocupado... pode-se ignorar o vazio por dentro.
Desde o início, minha própria existência foi um vazio. Não importaria se eu
tivesse que morrer neste exato momento... Você vive, você morre... É só isso.
_ Pessimista como sempre, Lacan –
retrucou Roni – E agora você está mentindo.
Lacan olhou para Roni, mas o
sorriso compreensivo do amigo não deixava espaço para argumentos, e ele apenas
tornou a baixar os olhos, permitindo que Roni prosseguisse.
_ Só o que acontece é que você
não é bom para expressar seus próprios sentimentos. Você não é vazio. É por
isso que ela só mostra seu verdadeiro sorriso a você.
_ Eu não mereço ver o verdadeiro
sorriso dela – Lacan tornou a sacudir a cabeça – Ela é a esperança das pessoas.
O apoio delas. Há tanto mais que ela deve fazer...! Por que ela abriria seu
coração a um mero artista como eu...?
_ Mano...!
A discussão foi interrompida e os
três voltaram-se para a porta, por onde Rene e Zephyr entraram um instante
depois. Notando de repente que interrompera alguma coisa, Rene olhou ao redor
em dúvida.
_ Ei mano... O que vocês estão
fazendo aqui?
_ O que aconteceu? – perguntou
Roni.
_ O Conselho dos Anciões de
Shevat chegou a uma decisão – disse Zephyr – Amanhã, nós partiremos para
Soylent.
_ Soylent? – Roni franziu o cenho
– Isso é em Solaris...
_ É – Rene pareceu hesitar – E...
Sophia vai conosco.
_ Isso é ridículo! – explodiu
Krelian – Os refugiados ainda estão chegando! Não podemos permitir que Sophia
deixe Nisan! E ir para Soylent!! Pura tolice! O que os Anciões estão pensando?
_ Não – Zephyr acenou com a
cabeça – Não foi o desejo do Conselho. Foi a vontade de Sophia. Parece que ela,
em pessoa, expressou esse desejo.
_ Não pode ser... – murmurou
Krelian – O que ela está pensando?
_ Originalmente, falamos em irmos
apenas nós – Rene comentou.
_ Apenas nós?
Krelian voltou-se, e ele e Lacan
olharam um para o outro em silêncio. A partir dali, algo mudara para sempre
entre os dois.
Horas mais tarde, dera-se a
batalha em Soylent. Miraculosamente eles conseguiram escapar, mas não ilesos.
Após um pouso de emergência, Lacan apressadamente abrira a cabine de Regulus
para encontrar sua piloto desmaiada, e ele próprio não parecia saber o que
fazer, tão perdido e penalizado que sequer tentara retirá-la do Gear, meramente
abraçado a ela e de olhos fechados, sem dizer palavra.
_ Sophia!
Krelian também viera até ela,
preocupado e temendo pelo pior, e com brusquidão ele afastou Lacan do caminho,
retirando Sophia de seu Gear e depositando-a gentilmente no chão. Ela estava
inconsciente.
_ Sophia... Lacan! O que está
fazendo?
Voltou-se e esmurrou o outro. Lacan
ficou parado, sem olhar para Krelian ou dizer coisa alguma. Frustrado e
irritado, Krelian rosnou:
_ Eu sabia que não podíamos
deixar Sophia aos seus cuidados! Eu vou protegê-la... Mesmo que me custe a
vida!
Dois dias depois, Sophia
repousava na enfermaria do cruzador de Roni, com Krelian aguardando fielmente
ao lado dela, esperando à sua cabeceira que despertasse. Pouco mais afastado,
também não tendo deixado o aposento durante a maior parte dos dias, Lacan
permanecia de cabeça baixa e sem dizer palavra. O silêncio pesado que se
estendera desde o campo de batalha foi interrompido apenas quando a porta
deslizou para dar entrada a Roni.
_ Por que não vai descansar um
pouco, Krel...? Você não dorme desde antes de ontem, não é? Não devia fazer
isso consigo mesmo!
_ Eu estou bem – mas Krelian
cambaleou, precisando de apoio e balançando a cabeça, como que para clarear os
próprios pensamentos – Isso não é problema...
_ Olha, eu tomo conta dela, então
vá dormir – Roni insistiu – O que vamos fazer se você também adoecer? Não
esqueça que você é o líder das forças militares da seita.
Krelian ergueu os olhos e
encontrou Roni de pé ao seu lado. Encarando o amigo por um momento, ele
concordou por fim com um aceno, pondo-se de pé e apoiando-se numa parede.
_ Muito bem... Suponho que você
tenha razão.
Exausto, agarrando-se em busca de
apoio para andar, Krelian saiu da enfermaria. E Roni, assim que teve certeza de
que o outro se fora, também caminhou para a porta. Depois de olhar uma última
vez na direção de Lacan e Sophia, ele também partiu.
Assim que ficou sozinho, Lacan
levantou-se e foi até a cabeceira do leito de Sophia, onde Krelian antes
estivera, ajoelhando-se e murmurando:
_ Elly... Eu sinto tanto. Eu...
Foi o meu erro que fez isso a você.
Ela continuava adormecida. Ciente
de que ela não podia ouvir, após hesitar por um instante, Lacan prosseguiu:
_ Eu fiquei apavorado... Era como
se você pudesse enxergar diretamente através de mim. Seus olhos... Aquele
olhar... Era eu que estava sendo refletido nos seus olhos. Eu estava olhando
para mim mesmo... E então, pintando a mim mesmo...
“Não pude suportar! Foi por isso
que... Ah, Elly... – ele sacudiu a cabeça – O que, em nome dos céus, você
descobriu dentro de mim?”
Quase sem notar o que estava
fazendo, ele tomou a mão dela gentilmente antes de prosseguir:
_ Quando você acordar, acho que
vou te perguntar isso... Ou, pensando melhor, não... Não, não quero te
sobrecarregar com os meus problemas. Além do mais, eu não seria capaz de te
perguntar... Bastaria olhar nos seus olhos e eu não poderia dizer nada... Nem
sequer conseguiria te dizer como me sinto...
E a mão dela fechou-se, apertando
a dele, enquanto seus olhos serenos se abriam e um sorriso despontou em seu
rosto.
_ Você é a pessoa mais doce desse
mundo...
_ Elly...!
Ela sentou-se no leito e ele
sentou-se onde Krelian estivera, um muito próximo do outro agora enquanto ela
dizia:
_ Você é alguém que não pode
suportar ver outras pessoas feridas pelos seus atos. Então, você guarda tudo e
suporta o fardo sozinho. Se você se ferir no fim, acha que está tudo bem. E é
isso... o que eu gosto em você.
_ Pare! – ele soltou a mão dela,
meneando a cabeça – Não diga isso. Se você se tornar apenas outro ser humano,
todos vão...
_ Os humanos... – ela murmurou,
tomando a mão dele novamente e fazendo com que se calasse – não são assim tão
frágeis, sabe? Eles não precisam de um símbolo que seja só aparência. Eu
acredito que, se você tem luz em seu coração, pode superar qualquer
dificuldade. O que estive fazendo é simplesmente mostrar às pessoas que tal luz
existe nos corações de todos. Sou apenas uma mulher...
Ela tocou no rosto dele, fazendo
com que olhasse em seus olhos.
_ E, para cumprir a minha
condição de mulher, estou preparada para jogar fora qualquer coisa... Até mesmo
esta posição. Estou apenas fazendo o papel de Sophia. Mas eu ainda sou eu mesma.
Não mudei em nada... Uma bebê chorona, egoísta, medrosa... Ainda sou a mesma.
Você conseguiria viver uma mentira como essa e ainda ser feliz...? Eu... Não
quero fazer isso.
E Lacan enfim compreendeu. Ele
sempre pudera ver, a Madre Sagrada que ele pintava estava lá, sobreposta à Elly
que conhecia. Sempre. Mas a mesma Elly de sua infância continuava existindo, e
ele era a única pessoa a quem ela sentia que poderia se mostrar. E era por isso
que não conseguia se afastar, mesmo quando o quadro começara a causar-lhe
repulsa. Não podia deixar Elly sozinha.
_ Ah, Lacan... Eu quero viver
mais honestamente comigo mesma. Ser capaz de dizer ao homem que eu amo que eu o
amo. E eu não me importo se me ferir ou for rejeitada. Só temos uma vida. Não
quero olhar para trás um dia e me arrepender de não ter feito tais coisas...
_ E-eu... Eu...
Lacan não encontrava o que dizer,
mas estava tudo bem. Naquele momento, os dois entendiam plenamente um ao outro,
mesmo que para isso não tivessem palavras. Aquele momento era apenas deles... Como
mesmo Krelian, de pé do lado de fora da enfermaria, era forçado a admitir. E
não havia espaço para mais ninguém.
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