sábado, 10 de setembro de 2016

Capítulo Quarenta e Oito Ponto Um

(...)

A imensa estrutura rosada ergueu-se, e tal era a potência de seus motores que toda a capital de Kislev pareceu estremecer enquanto ela flutuava e alterava seu curso, assumindo o rumo de Nisan.
Na ponte de comando da Arma Móvel de Solaris, seu comandante contemplava a visão trazida pelos monitores. Semelhante a uma esfera viajando entre inúmeras hastes metálicas, como um gigantesco cristal de neve, a Arma estava para os outros Gears como um cruzador da areia estaria para barcos de brinquedo; nem mesmo centenas deles tinham estatura ou poder para fazer frente a ela.
_ Quanto mais até Nisan? – o comandante perguntou.
_ Menos de vinte minutos, senhor – o navegador respondeu.
_ Muito bom. Preparar sistemas bélicos! Todas as estações, postos de batalha! Vamos passar depressa por aqui, e regressar. Já perdemos tempo demais com os Cordeiros por hoje.
Não tinham conseguido encontrar o Comandante Ramsus em parte alguma para liderar aquela ofensiva, mas não fazia qualquer diferença. Na verdade, a continuar como ia, talvez a Gebler tivesse muito em breve um novo líder... E um bom desempenho, mesmo numa missão simples como aquela, poderia fazer a diferença...!
_ Senhor, estamos captando um objeto imenso se aproximando da direção de Kislev! – o oficial do radar exclamou, interrompendo a linha de pensamento do comandante e trazendo-o de volta para a realidade – Está em curso de interceptação conosco; deve nos alcançar em menos de dois minutos!
_ Temos contato visual?
_ S-sim, senhor. Colocando na tela.
A tela do monitor principal da Arma Móvel iluminou-se para revelar uma estrutura que poderia muito bem ser uma gigantesca embarcação naval, não fosse o fato de estar flutuando a curta distância do solo. O comandante acabara de identificar algo semelhante ao Cruzador da Areia dos piratas de Aveh instalado na proa da embarcação quando esta começou a se desdobrar por inteiro.
Flutuando sobre o solo e diante da Arma Móvel de Supremacia de Superfície solariana, a nave de batalha destacou sua popa, que se desdobrou novamente, formando imensas pernas. A seção central e a proa destacaram-se e esticaram-se mais, formando braços, enquanto a ponte de comando da Yggdrasil libertou-se do corpo principal e todo o Cruzador de Areia deslizou para trás, formando o que parecia um imenso rifle escuro às costas do maior Gear que Ignas jamais vira. E enquanto a ponte de comando da Yggdrasil encaixava-se no módulo da cabeça, Bart exclamou:
_ Beeeeeeeeeeeeleeeeeeeeeeezaaaaaaaa!! Gear Superdimensional, Yggdrasil IV, transformação completa!!!! Vem pra cima, monstro!
As incontáveis hastes do Forte Furacão, como a Arma Móvel era chamada em Solaris, ondularam e se espalharam contra a Yggdrasil IV, fazendo com que recuasse alguns passos. Na imensa ponte de comando, Bart empurrou duas alavancas para frente ao mesmo tempo.
_ Isso é tudo? Toma essa!
O punho direito se abateu sobre o Forte Furacão, e em seguida o esquerdo, destroçando algumas das hastes da Arma Móvel e abalando toda a sua estrutura ao que parecia.
Todas as hastes remanescentes se posicionaram na horizontal então, fazendo com que a Arma Móvel de Solaris se assemelhasse a uma grande serra circular, e a Yggdrasil IV recuou novamente diante do ataque, enquanto Bart praguejava entre dentes:
_ Droga, mas... era só o que me faltava... Até parece...!
As mãos enormes do Gear fortaleza agarraram as hastes, agora alinhadas, e então arremessaram o colossal oponente para longe, fazendo o Forte Furacão arrastar-se para trás por alguns quilômetros antes de conseguir deter o impulso reverso. Em seu interior, o comandante lutava para restabelecer a ordem:
_  Isso é impossível... Canhoneiro, carregar Canhão de Movimento de Ondas! Vamos tirar essa monstruosidade do nosso caminho com um único feixe de energia maciça!
_ S-sim senhor! Carregando...!
Yggdrasil IV avançou na direção do inimigo também, com Bart cada vez mais animado nos controles:
_ Maneiro! Viram só a força desta coisa? Tudo bem, vamos continuar carregando até chegar ao Modo Hyper; tô louco pra ver o que essa belezinha faz!
_ Não creio que isso seja possível, jovem mestre – Sigurd o interrompeu, pigarreando – Lembre-se, o... ‘Yggdrasil IV’ ainda é um Gear comum, embora tenha tal magnitude. Uma vez que ele não responde aos seus comandos mentais, o Modo Hyper não deve estar acessível.
_ Ah, é mesmo – Bart pareceu desapontado, mas procurou se animar – Tudo bem então, pelo menos não vamos precisar poupar Níveis de Ataque; vamos pegar essa coisa com um Chicote em Cadeia!
_ Impossível, jovem mestre – Sigurd o interrompeu – Este Gear não é Andvari, nem Brigandier; não há como usar o mesmo sistema de ataques. Com seu tamanho colossal, seria de esperar que apenas seus punhos e força bastassem, não?
_ Pombas, mas aqui também não tem nada? Pra quê tanto tamanho se só o que ele faz é bater?
Devidamente refeito enquanto seu rival se aproximava, enquanto isso, o Forte Furacão cintilou e toda a sua energia foi canalizada para um emissor embutido na esfera central.
_ Todos os sistemas armados, comandante! Podemos disparar quando quiser!
_ Canhão de Movimento de Ondas, disparar!
Todas as hastes recolheram-se para a retaguarda e a esfera ficou voltada para a Yggdrasil IV, e seu emissor disparou um feixe maciço de energia na direção do imenso Gear de Bart.
A ponte de comando foi violentamente sacudida com o tranco do disparo, e apenas o jovem piloto conseguiu se manter em sua posição, com muito esforço.
_ Caraca, o que foi aquilo...? – Bart sacudiu a cabeça e procurou colocar sua máquina de pé – Jerico, relatório!
_ Os escudos de energia construídos no casco e sua espessura resistiram bem ao disparo, jovem mestre – foi a resposta – mas não acredito que tenhamos estrutura para outro choque desses.
_ Meu, é o fim da picada! – Bart explodiu, rodando furiosamente um programa de diagnóstico em seu painel – Tem que ter alguma coisa aqui além desse tamanho todo...! Vamos, gracinha, me mostra...! O que foi que o velho Roni deixou pra nós...?
E em resposta ao pedido de Bart, um diagrama do modo Gear da Yggdrasil IV surgiu na tela, mostrando o Cruzador de Areia Yggdrasil deslizando para frente, vindo às mãos do Gear fortaleza. E Bart leu a nova configuração com entusiasmo:
_ ‘Canhão Yggdrasil’? É, é isso mesmo!
_ Jovem mestre, por favor atente para o consumo de combustível – Sigurd alertou, apontando para o painel – Se fizermos um movimento precipitado a esta altura...
_ Eu adorei o nome dessa coisa, estou doido pra testar! – Bart seguiu como se não tivesse ouvido – Tudo bem pessoal, todos a seus postos. Jerico! Mudar pro modo ‘Canhão Yggdrasil’!!
_ Jovem mestre...!
_ Pelo menos dessa vez eu não estou na mira dele – Fei murmurou de sua posição, segurando-se firme enquanto, no Forte Furacão, a surpresa de todos foi resumida na pergunta do comandante:
_ E agora, o que é aquilo...?
Movendo-se com praticidade como um soldado veterano, a Yggdrasil IV sacou o Cruzador de Areia às suas costas e o empunhou como se fosse um rifle, e Bart comandou:
_ Canhão Yggdrasil, disparar!
Numa demonstração de energia semelhante à do Forte Furacão, mas ainda mais poderosa, toda a energia do Cruzador de Areia foi mobilizada num disparo devastador que atingiu em cheio a esfera central e causou explosões múltiplas por toda a estrutura da Arma Móvel solariana, encerrando a batalha.

A Arma Móvel de Solaris foi destruída... o que trouxe um suspiro de alívio ao Continente de Ignas.

A paz foi assinada e depois de cerca de quinhentos anos de divisão, a terra de Ignas mais uma vez se tornou unida. A excitação espalhou-se por Aveh, Nisan, Kislev, Shevat... O céu cintilava como se para celebrar. Pelas mãos de Elly, Citan, Taura e Emeralda, as nanomáquinas tinham sido dispersas na atmosfera.

Foi então que o desastre se abateu... Nossas canções de vitória foram substituídas pelos sons de total pandemônio...

No início, não tínhamos idéia do que tinha transpirado. Nós... testemunhamos um fenômeno inexplicável.
Pessoas de todas as partes do globo começaram a mutar para formas anormais.

Parecia ter sido desencadeado quando as nanomáquinas removeram o selo – Limitador – que fora colocado na humanidade por Krelian, no passado...

A forma ‘humana’ com suas habilidades inatas liberadas.

Foi quando me lembrei do que Hammer tinha dito lá, em Solaris. Suas palavras foram...
‘O que vai ser dos humanos normais...?’

A transformação também estava sendo assistida pelo Ministério Gazel no SOL-9000, de onde eles tiravam suas próprias conclusões.
_ Então, estão germinando naturalmente porque a ressurreição de deus está próxima...
_ Aqueles que se tornarão o corpo do nosso servo... Eu nunca soube que tantos existiriam, mesmo sem usar a chave...
_ Mas, alguns deles ainda não começaram a germinar...
_ Eles não estão destinados a ser a carne de deus?
_ Ou, talvez, aqueles sejam os inimigos de deus...
_ Devemos reativar os pontos estratégicos do Soylent...
_ De qualquer modo, eles são apenas mutantes incompletos. São inúteis agora, em sua forma meio-acabada.
_ Apóstolos de deus... Não pode haver qualquer mal em ter demais deles...


Krelian observava um de seus inúmeros nanorreatores com ar pensativo, e embora estivesse ciente da presença dela no momento em que chegara, parecia distante demais para dar-se conta de que não estava mais sozinho.
_ As correntes que restringiam a humanidade foram removidas por sua causa.
Ele sabia muito bem qual era a verdadeira preocupação de Miang e meramente cruzou os braços, voltando-se apenas parcialmente para ela.
_ Mas isso não quer dizer que haja qualquer coisa de errado com nosso plano. Tudo ainda está sob controle.
“No evento da explosão da capital de Solaris anteriormente eu deixei ajustado um vírus de nanomáquinas para se difundir na atmosfera. Eu sabia que eles eventualmente iriam romper o selo... mas o tempo da ação foi um pouco apertado para que eu ficasse à vontade.”
“As atuais mutações dos humanos são uma resposta inicial ao vírus. Uma vez que o vírus que espalhamos pelo mundo germine dentro dos humanos, eles não são mais os mesmos. Eles mudam para uma forma controlável. Nós precisamos de humanos que não dependam da invocação da chave a fim de despertar. Em outras palavras, um ser para tomar o lugar do corpo original de deus...”
_ É como um Cavalo de Tróia liberado na época da assimilação com deus... – ponderou Miang – Um vírus literal... Mas... Isso não é diferente do que eles pretendiam...?
_ Naturalmente – Krelian concordou – Não podemos deixar que eles façam as coisas como quiserem. A ‘Arca de Deus’ é minha.
_ ... De qualquer maneira está ótimo por mim – Miang riu – Seja como for, eu vou ficar do lado de quem quer que tenha maior probabilidade...


<Elly>

O Sistema Soylent...

Um grupo de instalações anteriormente criadas por Solaris. Essas instalações existiam por toda a terra.
É dito que, originalmente, elas eram usadas para experiências biológicas e lavagem cerebral. As pessoas que mutavam para o que foram chamados de Wels... Ou a verdadeira forma dos humanos... reuniam-se nestas instalações.


Instalações semelhantes às que Elly, Fei e Citan tinham visto em Solaris estavam espalhadas por toda Ignas. Wels e semi-Wels começaram a se reunir nelas, em grupos cada vez maiores.


Alguns dos humanos transformados em Wels estavam atacando humanos saudáveis e devorando sua carne e sangue. Isso, porque a carne e sangue de humanos saudáveis acalmavam a dor de suas mudanças moleculares súbitas e os fazia viver por mais tempo.

Suas vidas eram tão curtas...

Pouco depois, seres drasticamente mutados começaram a procurar pela carne e sangue de seres menos alterados.

O Sistema Soylent divide e mescla aqueles corpos mutados num nível molecular... Um conjunto de instalações que recria uma única forma de vida mais aperfeiçoada para ser usada como... uma ‘arma’.


Condutos translúcidos percorriam uma longa trajetória em cada uma das instalações do Sistema Soylent. De cada uma das salas de tratamento, só o que saía era um conduto semelhante, conduzindo líquido de cor vermelha e porções indefinidas de carne. Vistos à distância e do alto, esses inúmeros condutos e seus conteúdos lembrariam, talvez, vasos sangüíneos. Todos seguindo na mesma direção.


Esta era a verdade por trás do ‘Plano M’ do Ministério Gazel.

‘Vá para aquelas instalações e você será libertado da agonia insuportável’...

Então, as pessoas se reuniam, procurando um cumprimento desta promessa.

Há salvação lá...

A notícia se espalhou... embora ninguém, de fato, a tivesse sussurrado. Seu sangue mutado provavelmente disse a tais pessoas para se ‘reunir’ lá.

O destino de todos os condutos em cada uma das instalações do sistema era um tanque central de tamanho imenso, onde toda a matéria sólida e líquida coletada dos Wels era condensada; o líquido biológico nutria e servia de fonte de oxigênio para o conjunto amalgamado de toda a carne reunida, formando o que parecia ser uma criatura imensa e disforme.


Fomos até lá para destruir o Sistema Soylent...
Lá, humanos lutavam gananciosamente entre si por perdões limitados para viver. Era uma feia batalha para continuar vivendo. Ou pode ter parecido assim para o passante casual...

Mas pra mim, eles estavam desesperadamente tentando viver. Era a ‘forma humana natural’ de cada pessoa.

Havia os ‘tenho’ e os ‘não-tenho’... E... Entre eles... estavam alguns dos meus antigos amigos de Solaris...

Eles queriam nossa carne e sangue. Eles nos disseram, os ‘tenho’ deviam partilhar com os ‘não-tenho’.

Eles me perguntaram se uma ‘tenho’ como eu podia entender a dor deles...

Não pude responder...

Não importando o que eu dissesse, teria soado como a fala arrogante de uma ‘tenho’...

Mesmo assim, eu queria aliviar a angústia deles... e decidi fazer isso. Assim como a pessoa na memória dos meus sonhos... no passado distante...

Então, de repente, o Sistema fugiu ao controle!
A ‘Massa Sulfal’, um organismo monstruoso ainda no processo de amalgamação, atravessou a barreira do suporte vital da instalação e se pôs diante de nós.

Não mais de forma humana... aquilo que um dia fora humano começou a comer as pessoas reunidas lá, procurando alívio...

Nós tivemos que lutar com ele... A fim de salvar as pessoas, e a salvar a ‘ele’... 

Os olhos daquilo que um dia fora humano olharam para mim, implorando por... morte... para acabar com a agonia.

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