domingo, 13 de março de 2016

Capítulo Trinta e Seis Ponto Dois

(...)

Maria aproveitou a chance concedida por Bart e Seibzehn ergueu Weltall, levando-o ao outro extremo da passarela que conduzia até o gerador. E no centro da plataforma, Shakhan continuava a reparar seu Gear numa velocidade impressionante, e não parecia haver coisa alguma que Bart pudesse fazer para impedir.
_ Isso... é tudo o que pode fazer, menino? Então... é melhor começar a rezar!
O esforço de manter o Gear branco contido parecia vir de seus próprios braços, Bart sentiu, e sua mente viajou no tempo para a época do golpe de estado. Para seu tempo aprisionado em Bledavik. Para ele próprio e Margie sendo interrogados sobre o tesouro da família Fatima.
_ Shakhan!! Doze anos atrás, se você não tivesse sido tão faminto por poder – Bart rosnou entre dentes – Margie ainda teria a família dela e não teria tido que ir morar no deserto!
_ O que é que você sabe, seu fedelho que nasceu no trono?! – Shakhan cuspiu de volta, e apontou o escudo para Andvari – Tempestade de Ignas!
Àquela distância, foi como se explosões de fusão tivessem sido começadas à sua volta, Bart percebeu. Era como se o calor fora do Andvari fosse sentido por ele... Era como se ele fosse a mente, e o Gear o corpo. Não era apenas ‘manejar’ sua máquina... Era ser parte dela!
_ Nunca vai se livrar de mim, moleque! – a garra do Gear branco fechou-se no chicote esquerdo, e agora era Shakhan prendendo o inimigo a si – Aveh é minha, agora e para sempre! Você perdeu!
_ Não hoje...
Andvari ergueu lentamente seus olhos para o Gear branco, e Shakhan estremeceu quando eles cintilaram.
_ ... e nem pra você!
O chicote ainda livre bateu novamente livrando Andvari, mas Shakhan mal percebera.  Por um nítido momento, ele pudera ver os dois olhos de Bartholomew Fatima encarando-o, da mesma maneira que faziam quando ele mandava castigá-lo vez após vez por negar-se a lhe dizer onde estava o Jasper de Fatima. Nunca tivera a chance de quebrar o espírito do garoto, pois o haviam resgatado antes disso. E ele voltara agora como um homem, confrontando-o de igual para igual.
_ Você queria o tesouro de Fatima, não queria Shakhan? Foi pra isso que tomou Aveh. Queria poder. Muito bem... Aqui vai o poder que você procurou!
Andvari ergueu seus braços, os chicotes erguidos como se tivessem vida própria. E Shakhan, atônito, viu que uma forma espessa de ether começou a se formar entre eles. Aquilo não era um ataque ether de Bart, mas sim do Omnigear! E a última coisa que ouviu foi a voz de Bart bradando:
_ Andvari em Modo ‘Hyper’! Queda de Meteoro!
_ Modo... ‘Hyper’...?
Os chicotes começaram a cair sobre Shakhan numa sequência cada vez mais rápida, e cada um de seus impactos parecia carregar um pequeno meteoro feito de pura energia ether, atingindo o Gear branco do inimigo como bombas de reação em miniatura.
E Shakhan viu seu Gear enroscando-se ao cabo que o mantinha preso ao gerador. Se a ligação permitia recuperação mais rápida, também queria dizer que ele não podia se afastar, não sem soltar o cabo. E Bart ainda lançava seu último ataque sobre ele quando as reações de energia dentro e fora do Gear o fizeram explodir.
Fei e Maria a tudo assistiram de sua posição pouco mais afastados da área da luta, e a menina, filha e neta de construtores de Gears, murmurou:
_ ‘Modo Hyper’... Bart conseguiu! Alcançou o ‘Nível de Ataque Infinito’!
_ Nível... Infinito? – Fei perguntou, seu Gear pondo-se de pé devagar, e Maria explicou:
_ Gears comuns alcançam o Nível Três, mas nada além disso. Gears que respondem a comandos mentais, no entanto, podem retirar poder do Modo Hyper, onde todos os sistemas funcionam em perfeito alinhamento com o piloto, e então superar os níveis deles. É parte do que torna os Omnigears tão poderosos. No Nível Infinito, são capazes de destruir praticamente qualquer coisa.
_ Incrível... – murmurou Fei – Mas, se Gears que respondem a comandos mentais podem fazer isso...
_ Sim, Seibzehn também – Maria confirmou, antecipando a próxima pergunta – Mas o Modo Hyper pode levar algum tempo de batalha para ficar plenamente carregado. Acho que Bart conseguiu ativar o dele mais depressa como resposta às suas emoções.
O próprio Bart, enquanto isso, parecia alheio á conversa de seus amigos. O gerador de Portão à sua volta morria em explosões de chamas, e o Gear de Shakhan caiu no fosso sem fundo à volta deles.
_ Trono? Pode ficar com ele! – Bart murmurou enquanto o outro desaparecia – Um rei tem que carregar as responsabilidades mais pesadas entre todas! A maior dureza! Uma coisa que você nunca entenderia, seu rebelde!
_ O Portão está em chamas...! – bradou Fei – Vamos, precisamos sair logo daqui!
Weltall, ainda que muito danificado, estava em condições de seguir a retirada, mas Seibzehn e Andvari o apoiavam por sob os braços e, Turbos ao máximo, os três abandonaram a caverna que desabava. No oceano próximo, enquanto isso, os pescadores haveriam de se lembrar para sempre da coluna de luz que saiu das águas, seguida por relâmpagos que pareciam se originar de dentro do próprio mar e que, depois de faiscarem sobre a superfície por alguns segundos, resumiram-se numa violenta explosão submarina. Lendas nasceriam, teorias seriam tecidas, mas muito poucos deles chegariam a associar o fenômeno inexplicável com a derrota final de Shakhan, ou a cerimônia que teve lugar no dia seguinte em Bledavik, capital de Aveh.
Bart estava na varanda do Castelo Fatima, todo o povo da cidade reunido no pátio lá embaixo onde, algum tempo atrás, ele e os amigos tinham estado encurralados por Shakhan e Miang, e onde a intervenção de Maison os resgatara. A situação estava totalmente sob o controle deles agora, mas por alguma razão, ele estava ainda mais nervoso.
Voltou-se. O fato de ter seu melhor amigo ali, seus dois tutores e até o sábio Citan não fazia com que se sentisse melhor; era como se o povo ali embaixo fosse começar a atirar coisas nele. Havia algo estranho tentando sair por sua garganta, e ele respirou profundamente, olhando para todos.
_ Fei, se der qualquer coisa, eu ainda sou seu amigo, certo? Sig... Você não vai mudar, não importando o que eu faça, vai?
_ Qual é o problema, jovem mestre...? – Maison perguntou, e Bart sacudiu a cabeça. Tinham sido de grande ajuda, todos eles, mas ninguém podia fazer por ele o que era sua obrigação.
_ Nah... Acho que eu tenho que fazer o que me pediram.
A população lá embaixo subitamente silenciou quando o jovem pirata veio até eles, repentinamente parecendo mais velho e mais sério do que qualquer um teria imaginado até ali, e foi com solenidade que ele se dirigiu a eles.
_ Meu bom povo de Aveh... Este é Bartholomew Fatima, o Décimo Nono Rei de Aveh, filho de Edbart Fatima IV, o Décimo Oitavo Rei de Aveh.
“Em primeiro lugar, esta pessoa deve se desculpar pelos problemas causados pela ausência inevitavelmente longa desta pessoa do palácio. Em especial, esta pessoa quer dar suas condolências àqueles que perderam família na guerra com Kislev. Esta pessoa vai imediatamente pedir uma trégua a Kislev e iniciar as reparações às vítimas de ambos os países. Todos os cidadãos convocados como soldados também receberão permissão de retornar para casa. Vamos trabalhar juntos, rumo à reconstrução de Aveh!”
O povo lá embaixo exultou em agradecimento e alegria, ouvindo o anúncio que alguns tinham esperado suas vidas inteiras para ouvir. Mas a mão direita estendida de Bart pediu silêncio e encurtou a celebração, e Fei pensou consigo mesmo que nunca antes tinha visto o amigo parecer tanto com um rei.
_ ... Esta pessoa também tem uma outra mensagem final, mas muito importante. Uma declaração da vontade de Edbart IV que desejava apenas paz para seu reino, Aveh. Eu, Bartholomew Fatima, o Décimo Nono Rei de Aveh, assim declaro... Deste dia em diante eu abandonarei a monarquia e criarei a República de Aveh!
Silêncio seguiu-se à declaração por um curto espaço de tempo, no qual Bart deu as costas ao povo. O fez ainda em tempo de deparar com as expressões admiradas de seus dois tutores, Sigurd e Maison.
_ Jovem mestre...
_ O que, em nome de Aveh, está fazendo...?
_ É o desejo do meu pai – ele respondeu de cabeça baixa – Sig, Maison, eu sinto muito. Vocês dois se esforçaram tanto por tantos longos anos pra me devolver ao trono. Agora que não estou mais na linha de sucessão pra ser o rei, nem nada mais que pareça com isso, vocês dois são livres pra ir.
_ O que está dizendo...? – Maison mal parecia poder se manter de pé.
_ Inacreditável.
_ Mestre Sigurd?
Pois a expressão de Sigurd não era de surpresa, em absoluto. Ele tinha um sorriso no rosto e, diante de Bart, perguntou:
_ Não consegue ouvir a multidão lá fora?
Foi quando Bart se concentrou em ouvir. Sim, desde que começara a falar aos tutores ele ouviu que diziam algo lá de baixo, mas não dera a devida atenção, ocupado em ser tão franco quanto pudesse e se desculpar com seus mestres por frustrar as expectativas deles. Mas nem Sigurd nem Maison pareciam mais surpresos. E agora, além da janela, pareciam estar chamando o nome dele...
_ Eles o escolheram como seu rei – Sigurd acenou serenamente – Você vai ficar muito ocupado.
_ Sig...
Bart se voltou. Era o nome dele, sem dúvida. Estavam chamando por ele. Então, ao que parecia, o primeiro líder eleito pela república seria o último rei da monarquia de Aveh... E Sigurd perguntou, quase casualmente:
_ Não vai precisar de alguns assistentes capacitados?
_ Bom – ele voltou-se, sorrindo resignado para os amigos – Aí vai o de sempre.

Mais tarde, o Castelo Fatima estava silencioso. Todo o povo tinha voltado para suas casas, e Bledavik estava em festa, as ruas carregadas de uma atmosfera de liberdade e contentamento que não se mostrava já havia anos. A paz de espírito voltara a todos... ou quase todos.
Maison ouviu a porta da biblioteca se abrir e voltou-se. Bart entrou com uma expressão preocupada para a qual, a princípio, o mordomo não tinha explicação.
_ Ah, jovem mestre! Ainda não foi descansar?
_ Velho Maison, tem uma coisa que eu quero te perguntar.
_ O que é? – Maison perguntou, intrigado com a incomum seriedade de Bart.
_ Onde o Sigurd nasceu?
Não era, de forma alguma, algo que Maison não esperasse algum dia. Bartholomew não era exatamente brilhante fora dos campos de batalha e dos Gears, mas se preocupava muito com todos os seus, e aquela curiosidade um dia teria que vir à tona. No entanto, ele dificilmente teria esperado que viesse à tona em tal situação.
_ Jovem mestre, isso...
_ Ele tem olhos azuis – Bart comentou, lembrando-se do episódio no Forte Jasper – É o Jasper de Fatima.
_ Bem – sim, era a hora de contar – Foi há muito tempo. Quando Sua Alteza e eu ainda éramos jovens... Muito antes de Sua Alteza conhecer a mãe de meu jovem mestre. Sua Alteza se apaixonou por uma certa garota de uma pequena seita religiosa a leste de Aveh.
“Esta seita era muito diferente de Nisan e do ‘Ethos’, mas ela era muito bonita. Então... Ela simplesmente desapareceu. Mais tarde, houve rumores de que ela tinha tido um filho.”
_ Ela desapareceu? – Bart não podia acreditar – O pai abandonou ela?
_ Até onde eu sei, foi o contrário – Maison replicou de olhos baixos – Sua Alteza foi abandonado.
_ Sig é do deserto oriental de Aveh...
_ Certamente – Maison concordou – Quando ele tinha dez anos, foi designado a Sua Alteza, o Rei Edbart, como um escudeiro.
Sigurd estava de pé, na mesma sacada onde Bart se pronunciara naquela tarde. Parecia perdido em pensamentos, o único olho fitando a distância como se ponderasse algo, mas não estava tão desatento para não perceber o momento em que não estava mais sozinho, e voltou-se para deparar com Bart, parado e olhando para ele com um olhar indecifrável.
_ Jovem mestre...?
_ É, não consigo dormir.
_ Sim, tanto aconteceu de uma só vez.
Bart adiantou-se, debruçando-se também sobre a amurada da sacada e sem olhar para Sigurd, que após o primeiro instante também voltou à sua observação silenciosa. Mas ele estava muito consciente da presença de Bart para voltar à sua reflexão.
_ Ô Sig – Bart perguntou, sem deixar de olhar para a distância e em tom casual – Como era a sua mãe?
Sigurd voltou-se, mas Bart não olhou para ele. Após o primeiro instante de silêncio, respondeu:
_ ... Ela morreu quando eu era apenas uma criança, por quê?
_ Tem alguma lembrança dela? – o mais jovem perguntou, ainda sem se voltar – Que tipo de pessoa ela era?
_ Hmm, bem... Ela era muito gentil... Mas, quando eu nasci, parece que o médico disse a ela que não lhe restava muito para viver. Ela vivia com medo constante disso. Como resultado – baixou os olhos – mesmo se ela encontrasse alguém de quem gostava, seu medo da morte era um empecilho. Ela se preocupava com a idéia de poder não estar comigo até o fim...
_ E quanto ao seu pai? – Bart agora se voltou, mas Sigurd continuou a olhar para frente.
_ Supostamente, ele não sabe que eu nasci. No entanto, mesmo sem saber ele ainda me tratou como a um filho.
_ Por que você não contou pra ele que era seu filho?
_ Se minha mãe ocultou esse fato – Sigurd baixou os olhos novamente – devia haver uma razão.
Silêncio. Tanto um quanto o outro apenas olhavam adiante agora, e para Sigurd, não havia mais o que dizer. Mas Bart, após uma pausa, comentou:
_ ... Tem mais no testamento do meu pai do que eu declarei hoje. Eu devo dividir minha herança com o meu irmão. Ele também disse, ‘Você deve dividir a sua metade e a do seu irmão com o povo’.
Sigurd voltou-se para ele, os dois finalmente olhando um para o outro enquanto Bart prosseguiu.
_ Isso sempre tinha me deixado encucado, até agora. Eu não sabia do que ele tava falando. Bom... É tudo o que eu queria dizer. Boa noite!
E Sigurd continuou em silêncio enquanto Bart se retirava de volta para seus aposentos.

  

THE WORLD IS PEACEFUL AND STILL...

Nenhum comentário:

Postar um comentário