Capítulo 28: No Fundo do Oceano
_ Thames à vista!
A Yggdrasil se aproximara da
Thames. Chegando à alta velocidade, eles foram avisados pelo oficial do radar
que o ataque fora retirado, a nave cidade aparentemente bem sucedida ao tentar
fugir da perseguição. Citan subiu com Bart e Billy até a cabine de comando, o
Elevador Espiral aparentemente ileso, e foram recepcionados com satisfação pelo
Capitão.
_ Ah, são vocês! Bem-vindos a
bordo de novo! É bom tornar a vê-los!
_ Viemos o mais depressa que pudemos
– Citan desculpou-se – Temíamos não chegar a tempo, mas vocês parecem ter
lidado bem com a situação.
_ Mas é claro que sim, porque... –
e o Capitão ergueu a bengala, apontando-a para frente.
_ Nós somos! – voltou-se para a
esquerda.
_ Homens! – voltou-se novamente.
_ Do mar!
Mas havia um pouco menos de
entusiasmo na celebração desta vez. Após um instante mantendo a pose, o Capitão
voltou-se para os amigos com ar abatido.
_ Normalmente, é isso o que eu
diria. Mas temos pessoas gravemente feridas na ala médica, alguns feridos
fatais inclusive. Resgatamos a todos os que pudemos dos outros navios, mas...
E o Capitão, com a ajuda de Hans,
fez um breve resumo do acontecido, até o momento em que a ‘coisa peixe’ tomou
outra direção.
_ Até onde pudemos ver – disse
Hans, apontando para a janela da ponte de comando – aquela coisa partiu rumo ao
norte. Há uma área de escavação do ‘Ethos’ naquele rumo, onde há rumores de que
descobriram algo realmente antigo.
_ Citan, eu não pediria por
vingança – o Capitão disse em tom solene – Mas se vocês pretendem mesmo
enfrentar aquela coisa escura, aceitem o meu conselho e tomem muito cuidado. Só
precisaram de um disparo para acabar com a nossa frota e danificar a Thames.
Vamos levar dias pra consertar todo o estrago e perdemos gente muito boa. Não
temos condição de enfrentar aquilo, mas vamos ajudar vocês com qualquer coisa
de que precisem. Hans! Avise o pessoal da área de suprimentos para abrirem o
depósito. Nossos convidados podem pegar o que precisarem de lá, com livre
acesso. Isso vai em nome dos nossos colegas feridos. Só vou pedir uma coisa a
vocês; depois que isso terminar, venham nos contar como aconteceu. Nosso
pessoal precisa saber que não passou por tudo aquilo em vão.
Parecia estranho ver o Capitão
falando daquela forma, mas era compreensível, principalmente para Bart. Ele
sabia bem o que era ter a responsabilidade por toda uma tripulação, e prometeu
silenciosamente vingar o que a Thames tinha sofrido. Devia aquilo ao Capitão, e
aos outros também.
Em algum ponto do oceano, um
imponente Gear de bronze estava em modo de espera, de braços cruzados e ereto.
Seus sistemas de auto-reparo há muito haviam sanado os problemas causados
depois de sua última batalha, e seu mestre lutava para conter as poderosas forças
em seu interior. Adquirir mais aquele poder valera a pena, mas por vezes o
incomodava, e não tinha como evitar, levando em conta o que sentira. Era
‘ele’...!
Seus comunicadores receberam uma
mensagem inesperada, e o rosto familiar de Miang formou-se em seu monitor
principal.
_ ... Você notou? O Gear dele está
tornando a despertar. Em breve, ele próprio também vai despertar.
Grahf não tinha nada a dizer.
Claro que sabia disso. O que o intrigava era qual o interesse de Miang na
questão. E a imediato de Ramsus logo esclareceu:
_ Os amigos dele estão indo para
Zeboim. Já esteve selada há 4000 anos. Você sabe o que há lá melhor do que eu.
Ele provavelmente não entregará nada a ninguém. Mas é algo de que nós dois
precisamos. Sabe o que quero dizer?
Claro que ele sabia. Não era
preciso dizer coisa alguma. Não obedeceria a ordens da mulher de cabelos
púrpura, mas seus interesses também estavam em jogo. Não podia ficar parado.
_ ... Então, por favor.
O rosto de Miang desapareceu do
monitor. E o Gear de bronze lentamente começou a erguer-se.
A Yggdrasil, devidamente
abastecida, rumou na direção indicada pela tripulação da Thames, e não tardou
para que encontrassem a área secreta de escavação do ‘Ethos’. Havia sinais de
luta no exterior, o que os levou a supor que tropas de Solaris também tivessem
atacado ali. Tudo estava silencioso, mas Citan e Billy tinham recentes demais
as lembranças do acontecido no quartel-general do ‘Ethos’ para se arriscarem.
Elly, no entanto, olhava para o elevador que conduziria ao interior da escavação
com um ar indecifrável em seu rosto.
Estavam agora no elevador, e Billy
estava pronto para sacar e atirar; até seria um alívio, depois da provação no
‘Ethos’, e de tudo o que Stone dissera. Mas ele ainda não entendia as
motivações dos inimigos.
_ Citan, o que Solaris está
tentando fazer? – ele perguntou quando o elevador terminou sua descida longa,
diante da área de escavação. Mas mesmo o catedrático parecia em dúvida.
_ O exército principal de
Solaris... Para quê... tudo isso...? Bem, vamos descer.
O trio seguiu em frente. Eles
temiam o ataque de tropas de Solaris, ainda possíveis depois de dizimar os
escavadores, ou mesmo monstros, freqüentes em áreas como aquela, mas a única
coisa presente além deles era o silêncio, um tanto enervante. O grupo logo alcançou
uma passarela de paredes de vidro. A iluminação artificial permitia uma ampla
visão dos arredores, e era impressionante; estavam numa das áreas mais elevadas
de uma vastíssima caverna, numa torre de saída. Lá embaixo, até onde a vista
podia alcançar, prédios e ruas de uma cidade antiga espalhavam-se por toda a
volta num cenário surpreendente.
_ Isso são... ruínas de uma
cidade...! – murmurou Billy – Eu já tinha ouvido falar nela, mas...
_ Eu sei, eu a conheço bem... –
Elly murmurou, caminhando para frente com um olhar vago e uma voz distante, sem
parecer ela mesma – Sim... A cidade na caverna, Zeboim... Quando estávamos
enterrados naquele vasto mausoléu...
_ Elly! Elly! – Citan estava
alarmado, sacudindo a moça pelos ombros – O que foi!!?
A princípio, Elly apenas manteve o
mesmo ar distante e entristecido, mas logo pareceu despertar, confusa, olhando
ao redor como se não soubesse onde estava.
_ Hã...? O quê...? Eu por
acaso...?
_ Não... – Citan estava cheio de
alívio, e confuso. Aquilo não devia ser nenhuma seqüela da hipnose anterior, e
isso era motivo de alívio. Mas, a forma como ela falara... – Vamos, é melhor
seguirmos em frente.
O caminho conduzia sempre para
baixo. Elly, Citan e Billy repararam, olhava para as ruínas por toda a volta
com uma expressão estranha. Eles também estavam surpresos; mais de quatro mil
anos não haviam bastado para deteriorar as paredes de metal em sua maioria,
embora os sinais claros de abandono estivessem por toda a parte: teias de
aranha, mofo e muita poeira. Mas o olhar de Elly parecia reconhecer as ruínas
de alguma forma.
_ Um equipamento tão fantástico de
isolamento numa instalação – comentou Billy, olhando em volta num corredor –
Será que era um hospital? Mas, a cidade lá fora tampouco parece tão poluída...
_ Um equipamento de trancas de ar
e saneamento muito severo – concordou Citan – No entanto, não parece
operacional... O interior tão bem preservado, o exterior provavelmente também
está...
_ Ah...!
Elly entrou na sala seguinte
obrigando seus companheiros a voltarem até onde ela estava, olhando em volta
com ar de assombro e reconhecimento para painéis computadorizados e uma janela
opaca, o que novamente chamou a atenção de Citan.
_ Elly... Você se lembra de já ter
visto isso?
_ S-sim... Eu me pergunto por
quê..? – ela olhou em volta com uma expressão de pesar – É terrivelmente
solitário... e familiar.
O computador da sala ainda estava
operacional, e acusava uma emergência de nível cinco, o que mantinha o reator
central isolado, bem como todos os acessos ao banco de dados do laboratório
principal. Embora o trio persistisse na busca, no entanto, não pareciam estar
fazendo mais do que andar em círculos.
_ Que prédio inconveniente... –
queixou-se Billy – É como se estivesse recusando forasteiros.
_ ... Labirintos geralmente não
são construídos para proteger contra inimigos... – ponderou Citan – Geralmente,
são feitos para trancar algo em seu interior.
_ Não para manter algo para fora,
mas para manter algo dentro... – Billy raciocinou – Me pergunto o que seria
este ‘algo’?
Procurando mais adiante, eles
finalmente descobriram o motivo para as portas seladas. Após uma fileira de
escadas, uma voz eletrônica barrou seu acesso a uma das portas, anunciando:
_ Área isolada. O botão de
emergência dentro do reator foi ativado há 34999999 horas atrás. A partir deste
ponto, há o risco de nanocontaminação. Quando penetrar na sala, por favor
execute uma análise manual e confirme a segurança. Depois da confirmação, por
favor, reinicie o nível de emergência no terminal mais próximo. Efetuar
análise?
Citan operou o painel da porta, e
o trio foi analisado pelo leitor ótico da porta, que logo registrou não haver
nanocontaminação. No entanto, antes de entrar na sala, eles tiveram que recuar
até o terminal mais próximo para reiniciar o nível de emergência. Ao penetrarem
pela porta selada, tiveram que aguardar enquanto os sistemas reduziam a pressão
do ar sensivelmente, e Citan não deixou de se admirar:
_ Este nível está completamente
ativo, mesmo depois de tanto tempo...!
Elly subitamente passou por eles,
Billy e Citan olhando sem entender enquanto a moça entrava num corredor de
luzes vermelhas, selado por portas de vidro verde. Sua expressão era de dor e
ela estava de mãos juntas, enquanto murmurava de maneira quase inaudível:
_ ... Sangue... Coberta de
sangue... Meu... sangue... Não havia dor alguma... Apenas... frio... e
tristeza...
_ Elly...!
_ Ela esteve aqui, completamente
sozinha, durante este tempo todo... – Elly parecia alheia a tudo, saindo pelo
corredor atrás dos dois como se eles nem estivessem ali. E Citan olhou em
volta, analisando.
_ Sangue...? – examinou o metal
próximo à porta mais detidamente, encontrando pequenas marcas nas paredes, e
manchas escuras – Certamente está coberto de sangue... E isto... Calor
excruciante... Não, talvez seja radiação? Talvez seja um sistema de desinfecção
de emergência... Estas marcas são evidência de que ele foi usado...
Um som de máquinas se fez ouvir
nos fundos, e Billy e Citan voltaram–se surpresos. Numa sala ao lado, Elly
estava operando os painéis antigos com segurança, como algo que ela sempre
fizera, e enquanto as telas enchiam-se de palavras e sinais tão antigos que não
fariam sentido para qualquer pessoa viva, Elly uniu as mãos novamente e disse
baixinho:
_ Ó veículo para uma nova alma!
Que o espírito que habita em ti encontre a paz.
Foi de cabeça baixa diante dos
monitores, ainda mostrando vários programas em execução, que Citan encontrou a
moça, e advertiu:
_ Elly, não! Não sabemos o que
poderia acontecer!
Elly voltou-se com ar triste para
Citan, e ele sem entender por que sentiu pena. Acompanhada de um temor
desconhecido.
_ Citan... Quem... sou eu...? O
que estou fazendo? O que estou dizendo...?
Não havia resposta que o
catedrático pudesse oferecer, uma vez que ele incomumente não tinha a menor
idéia do que estava havendo. Nada parecia poder explicar a familiaridade de
Elly com aquelas ruínas antigas. E Billy, ainda no corredor de portas seladas,
voltou-se ao ver um cilindro repleto de um líquido esverdeado erguer-se no meio
da sala, e bolhas erguendo-se em seu interior. Aos poucos, enquanto a espuma
formada se alternava com o líquido, o corpo de uma menininha de, no máximo,
nove anos de idade se fez presente, seus cabelos verdes flutuando no interior
do cilindro. O trio espalhou-se ao redor do cilindro, e Billy indagou:
_ Citan... Essa menina...? Como
ela subitamente mudou para a forma humana?
_ Esta menina parece ser uma forma
de vida artificial criada dentro do reator – Citan respondeu, olhando
pensativamente para a criança flutuando no cilindro – Ela provavelmente foi
montada no reator usando-se aquela série no banco de dados da sala de controle.
Provavelmente, o corpo dela foi...
_ ... construído de máquinas
autônomas numa escala molecular – completou uma voz no corredor, fazendo-os voltarem-se
– Em outras palavras, uma colônia de nanomáquinas.
Stone entrou na sala seguido de
oito dos assassinos vestidos de clérigos que antes tinham sido vistos no
‘Ethos’, e mais duas garotas em uniformes de Solaris que se detiveram na porta.
Sem qualquer cerimônia, o bispo disse:
_ Vou levar essa colônia de
nanomáquinas comigo, obrigado. Essa é a existência, ou o fator chave, com o
qual Deus vai nos guiar para libertar a humanidade de seu jugo. Então, se não
se importam...
Alguns dos solarianos vestidos de
clérigos foram aos painéis e fizeram com que o cilindro se suspendesse, o
líquido se desfazendo numa névoa branca suave enquanto a menina parecia
aguardar pelo que seria decidido com um olhar sem expressão. E Billy tocou
nervosamente suas pistolas.
_ Bispo...
_ Ah, Irmão Billy, está aqui
também. Isso torna as coisas mais simples. Eu sei que vai entender... Esta
colônia de nanomáquinas precisa estar nas mãos de uma pessoa honrada. Está
destinada a ser a ‘salvação da humanidade’.
_ Uma pessoa honrada? – Billy
indagou friamente – Eu certamente não acredito mais que você seja honrado.
Eliminar o ‘Ethos’ e qualquer humano da superfície que não concorde com a sua
vontade...
_ Qual o problema em eliminar
aquelas pessoas que não sejam adequadas para a ‘salvação’? Se, nossa própria fé
não é baseada no preceito de que ‘apenas os escolhidos serão salvos’?
_ ... Há algo muito errado com
isso – replicou Billy – Salvação pela fé é algo que todos deveriam ter uma
oportunidade igual de alcançar.
_ Está dizendo que pode salvar
toda a humanidade? Se Krelian usar a colônia de nanomáquinas, ao menos podemos
salvar alguns poucos escolhidos. Mas vocês não entendem como utilizar isto. Não
podem salvar ninguém. Pretende assumir a responsabilidade pela perda que vai
causar à humanidade?
Billy não sabia o que dizer. Havia
algum fundamento no que Stone dizia, talvez, mas ele sentia em seu coração que
aquilo estava errado. Não podiam perder a humanidade inteira, mas tampouco
podiam condenar os ‘não-escolhidos’. E o método de seleção do bispo, dado o que
ocorrera no ‘Ethos’, não parecia muito correto. E Stone prosseguiu:
_ Meu trabalho agora é levar esta
colônia de nanomáquinas para Krelian. Perceba, diferente do ‘Ethos’, nosso
objetivo não são as armas antigas que jazem nas ruínas da cidade. Eu não penso
que estejamos em conflito com seus interesses.
_ Não! – Elly se opôs – Não
podemos permitir que eles levem essa criança!
_ Salvação ou não – Billy apontou
uma pistola para um dos clérigos, fazendo-o deter-se – O que estão planejando
fazer com essa menina?! Tudo o que sei é que seus feitos não são honrados.
Bispo... Lamento dizer isso, mas... Não posso ser parte do que você tem
intenção de fazer.
_ Vejo que não pude fazê-lo
entender... – Stone comentou, um cintilar estranho nas lentes de seus óculos –
Então, não pode ser evitado... Não tenho o tempo para insistir em convencê-lo.
Por favor me perdoe, já que devo me apressar.
E voltou o rosto para as duas
moças na porta, dizendo:
_ Desculpem deixar as duas damas
esperando... É hora de fazerem seu trabalho, Elementos.
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